Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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domingo, 2 de agosto de 2009

O pequeno grande homem – por Carlos Eduardo Esmeraldo

Acho que não havia ainda completado seis anos de idade quando o conheci. Nessa época, eu vivia livre nos matos do Sítio São José, ouvindo o canto dos pássaros, o mugir das vacas, o apito do engenho, a passagem dos trens a pouco mais de cem metros da nossa casa. Mel, alfenins, rapadura e garapa morna da cana recém-moída eram os meus quitutes prediletos. Tamanha carga de açúcar adicionada à minha alimentação, associada à minha rebeldia contra o uso da escova de dentes, levou-me a uma noite mal dormida, que eu jamais esquecerei. Um dentinho de leite estragado foi a causa daquela minha primeira noite de insônia. Ainda hoje, quase sessenta anos depois, escuto a voz doce e suave da minha mãe, tentando acalmar o meu choro: “Amanhã vou lhe levar ao doutor Aníbal para ele obturar esse seu dente.”

No dia seguinte, levantamos da cama cedo e fomos rumo ao Crato numa das “Sopas do Anselmo”, como chamávamos os precários ônibus, cujas carrocerias eram adaptadas de velhos caminhões, e que transportavam pela poeirenta estrada velha os moradores do Crato para o Juazeiro, e vice-versa. Da praça onde os ônibus estacionavam para o consultório do doutor Aníbal era um pulinho só. Após algum tempo de espera, que para mim pareceu não ter fim, eu e mamãe fomos introduzidos no consultório do doutor Aníbal. Aos meus olhos de criança estava diante de um homem muito grande. Segurou-me fortemente e, num piscar de olhos me sentou numa cadeira esquisita. Em seguida, ele mandou que eu abrisse a boca e se dirigiu a um canto da sala para pegar um instrumento que me pareceu ser um alicate. Os humildes moradores do São José que tinham seus dentes extraídos, ou melhor: “arrancados”, como diziam eles, contavam horrores das extrações de dente. Então segurei firme com as duas mãozinhas o seu braço e disse: “O senhor não vai arrancar não!” E ele, com voz suave e tranqüilizadora, respondeu: “Calma rapaz, eu vou só extrair.” Na minha doce inocência pensei que ele desejava dizer, com outra palavra que eu não conhecia, que ia apenas obturar o meu dente. Foi uma operação indolor e logo fomos dispensados. Na saída para a rua, depois de cuspir na raiz de um enorme pé de fícus que existia defronte ao consultório e ver a prostrada de sangue, exclamei para mamãe: “Que doutor enrolão! Ele disse que ia extrair e fez foi arrancar!” Desnecessário dizer que fiquei mal-acostumado. Desse dia em diante, quando um dentinho de leite amolecia, insistia que ele fosse extraído pelo doutor Aníbal. Ele foi meu dentista por quase meio século. Não somente meu, mas de todos da minha família.

O tempo passava e anualmente tinha de ir ao dentista. Não sei se existe alguém que goste de ir ao dentista. Eu pelo menos não gostava e continuo assim nos dias atuais. Horas de espera no consultório lotado de clientes. Naquela época, não havia esse requinte de marcar horário. O atendimento no consultório do doutor Aníbal era por ordem de chegada. E até seus filhos entravam na fila. Por isso, eu mal chegava do colégio, almoçava às pressas para ser o primeiro da fila. Enquanto esperava, eu olhava curiosamente o movimento da casa, que tinha as duas salas da frente reservadas para o consultório e o restante como residência da família. A cada ano nascia uma criança na casa do doutor Aníbal. Ao todo: oito filhos geneticamente distribuídos: quatro homens, quatro mulheres, dois homens morenos e dois louros, duas morenas e duas louras. Quando eu já tinha mais ou menos uns doze anos de idade, comecei a notar que uma das filhas do meu dentista tinha uma beleza que me chamava a atenção, além de uma acentuada meiguice, destacada pela bela e entoada voz quando cantava: “hei você aí, me dá um dinheiro aí...!” Observava, sem jamais ser notado, quando ela saia para a escola com sua fardinha branca sobreposta por um pequeno avental de quadradinhos azuis. Jamais poderia imaginar naquela época, que aquela filha do meu dentista seria minha mulher e doce companheira por essas estradas da vida. Mas o meu futuro sogro, além de filho de um velho amigo do meu pai, era também um de seus melhores amigos. Nos feriados do carnaval e da semana santa, uma caravana de amigos de papai ia para nossa fazenda “Mão Esquerda”, no Pernambuco. Entre esses amigos estavam o prefeito Ossian Araripe, Jósio Araripe, Antonio Luis, Chico Piancó, doutor Aníbal e dona Maria Eneida. Ficava chateado porque eles não levavam os filhos.

Todos os dias de minha vida eu agradeço a Deus por ter proporcionado a graça de casar com Magali, uma das filhas do doutor Aníbal. Ela é tudo aquilo que os olhinhos do meu coração de criança enxergavam e muito mais. Juntamente com seus irmãos, todos eles são herdeiros da simpatia, do caráter, do senso de justiça e respeito ao ser humano, principalmente aos mais pobres, aliado à fidalguia, atributos adquiridos do doutor Aníbal e dona Maria Eneida.

Além dessas qualidades que aqui relacionei, o meu sogro, quando na juventude, era um desportista aplicado. Certa vez, o diretor da Coelce, Espedito Cornélio me disse que nos anos quarenta o doutor Aníbal era o melhor jogador de basquete da seleção cratense. Na hora achei que ele estava falando de outra pessoa. Esta minha dúvida somente foi dissipada no dia em que estávamos no Aeroporto do Juazeiro, para embarcar alguém da família, e lá nos encontramos com o coronel Adauto Bezerra. Ele nos cumprimentou e perguntou: “Aníbal, você ainda joga basquete?” Confirmada mais essa qualidade do meu sogro, depressa descobri outras tantas com muita facilidade: sua inteligência privilegiada era uma delas. No dia em que completou cinqüenta anos de sua formatura no CPOR, fui com ele até a sede da 10a Região Militar para as comemorações. O general comandante lhe entregou uma condecoração e disse para todos os presentes que, até aquela data nenhum aluno do CPOR havia superado as notas do aluno Aníbal Viana de Figueiredo. Ele havia sido aprovado com a nota igual a dez em todas as provas. Nesse instante, olhei para ele e me ocorreu que ele ficou achando que aquele elogio não era com ele, tão simples e desprovido de vaidade era. Se alguém lhe dirigisse um gracejo, ele respondia com outro maior ainda. Certa vez estava em sua casa e ele só me chamava de Eduardo. Como ele estava com mais de oitenta anos e num processo de esclerose, pensei que ele me confundia com seu outro genro Eduardo Siebra. E então brinquei com ele: “Isto é que é gostar do seu genro Eduardo Siebra. Só me chama pelo nome dele.” E ele retrucou imediatamente: “Seu nome não é Carlos Eduardo?” Numa prova de que a inteligência não envelhece e nem desaparece com o passar do tempo.

Outra grande característica da personalidade do meu sogro era a solidariedade aos colegas de profissão. Muito amigo do doutor José Nilo Alves de Sousa, um seu colega desde os bancos escolares do Crato e outro dentista de grande clientela na cidade. Jamais se preocupou com a concorrência. Muito ético, sempre ajudava aos novos dentistas que iniciavam sua profissão no Crato.

Apesar de ter o seu consultório sempre lotado de clientes, o doutor Aníbal nunca fez fortuna com a profissão. Tratava com a mesma distinção ricos e pobres, mesmo quando estes não podiam lhe pagar. Um depoimento que mais me impressionou, foi dado por um homem simples, que veio cumprimentá-lo, certo dia na Praça da Sé, ao lado da Igreja. Depois este senhor me segredou: “Nunca esqueço um grande favor que ele me fez. Bati na porta dele às duas horas da madrugada, debaixo de uma chuva muito forte. Eu estava com uma dor de dente muito grande. Ele levantou-se e foi ao consultório me atender. Perguntei quanto lhe devia e ele me disse que não precisava pagar nada. Então quando eu ia saindo para casa, ele me perguntou: Onde você mora? Na Batateira, respondi. E o doutor me disse: Espere aí que eu vou lhe deixar em casa. E foi tirar o carro da garagem.

Era assim o meu sogro. Pequeno no tamanho, mas grande nas atitudes. Um dos melhores dentistas do Crato, um exemplo de profissional, extraordinária pessoa humana, modelo de verdadeiro cristão e referência para a odontologia cearense.

Por Carlos Eduardo Esmeraldo

4 comentários:

socorro moreira disse...

Retrato fiel de um grande homem.

Stela disse...

De fato, Carlos, você tem razão: Dr. Aníbal é o dentista inesquecível de "meio Crato e mais a metade". Numa das minhas idas ao Crato, quando fui ao encontro de Magali, fiquei muito emoconada ao me deparar com Dr. Aníbal, já bem velhinho, mas com uma presença ainda marcada na minha memória dos tempos em que sentei-me na sua cadeira de dentista. Parabéns pelo texto, você é um bom contador de histórias.

Carlos Eduardo Esmeraldo disse...

Meus agradecimentos a Socorro Moreira e Stela Siebra pelos comentários sobre o Dr. Anibal Viana de Figueiredo. Devotava a ele uma amizade filial. Considero-o uma unanimidade em todo o Crato e senti sua morte como se fosse a do meu próprio pai.

Claude Bloc disse...

Carlos Eduardo,

Eu havia desenvolvido aqui um comentário sobre Padrinho Aníbal, mas por essas mazelas virtuais vejo que não apareceu nestes comentários.

Eu dizia que Padrinho Aníbal foi, (juntamente com Dr. Jefferson)um dos primeiros contatos civilizados de meu pai, recém chegado da França. Foi uma amizade eterna e enraizada pelos anos de minha infância com minhas idas e vindas de Serra verde a Crato.
Eu gostava da risada de Padrinho Anibal, entre sonora e contida e apreciava sua dedicação ao trabalho e à família.
Foi ele que me arrancou os primeiros dentes de leite e também quem cuidou de minha dentição até minha fase adulta.
Lembro-me de suas estratégias para receber minha aceitação na hora de arrancar um dente, mas acabava me "enganando" falando que ia ver se o dente estava mole, e num pequeno sopapo estava eu banguela e chorando (não de dor). Depois eu jogava meus dentes sobre o telhado e dizia: "Mourão, mourão/ pega teu dentre podre/ e me dá um são".
Foi assim meu contato com padrinho Anibal. Esse cuidado paternal para comigo e a teimosia de não querer aplicar anestésicos para tratar meus dentes(risos).
Tenho nele a imagem e a lembrança carinhosa de quem foi presença na minha família juntamente com a minha fada-madrinha Marineida.

Essa saudade se multplica a cada vez que me lembro da amizade generosa que ele tinha pelas pessoas e de como valorizava seu núcleo familiar.

Deus o abençoe, onde ele estiver.

Abraço a você e a Magali

Claude