Carybé pintou o candomblé como ninguém e partiu
entre deuses de um culto na Bahia
(Geraldo Mayrink)
Foto: Fernando Vivas
Carybé: versatilidade formal do
maior cronista visual da Bahia,
para onde se mudou nos anos 50
Alto, elegante e magro, envolto em paletós de tweed e foulard de renda negra no pescoço, sempre que a temperatura permitia, Hector Julio Paride Bernabó era argentino de nascimento, italiano de formação, carioca quando se tornou brasileiro e cidadão do mundo com seus murais nos aeroportos de Nova York e Londres.
Quando morreu do coração, durante uma sessão no terreiro de candomblé Ilê Axê Opô Afonjá, em Salvador, ele já era tão baiano quanto outro estrangeiro, o etnólogo francês Pierre Verger, havia sido em vida.
Carybé, como era conhecido, tinha 86 anos, estava terminando novas telas e não podia mais subir escadas, proibido pelo seu médico. Ainda assim, insistia em continuar produzindo.
Pintor de recursos limitados, mas um desenhista brilhante, pertence à mais depurada crônica visual da Bahia, que tanto pode ser vista nos desenhos que criou para os livros de Jorge Amado quanto na vasta galeria de tipos de deuses do candomblé.
Amante da vida, Carybé era tocador de pandeiro, bom dançarino e contador de histórias. Acima de tudo, tinha um título de Obá de Xangô, o posto mais alto dado pelo candomblé, seu maior orgulho.
"Sou amoroso e devoto da religiosidade afro-brasileira, de seus deuses modestos e humanos, que hoje se defrontam com estes deuses contemporâneos, terríveis e vorazes, que são a tecnologia e a ciência", ele dizia.
Casa de Exu: vendo a religião
afro-baiana por dentro
e recriando-a de memória
Certamente por isso, as cenas do candomblé ocupam boa parte da vasta produção deixada por Carybé. A porção mais grandiosa de seu trabalho é justamente o desenho, a aquarela e o nanquim. De maneira nervosa e moderna, com poucos golpes de pincel, ele era capaz de resumir a forma de baianas prostradas de joelhos como magníficos círculos coloridos.
Segundo o amigo Jorge Amado, foi como um observador de dentro, envolvido com a religião, que o artista se dispôs a retratá-la. "Outros podem reunir dados frios e secos, violentar o segredo com as máquinas fotográficas e os gravadores e fazer em torno dele maior ou menor sensacionalismo, a serviço dos racismos mais diversos, mas apenas Carybé e ninguém mais poderia preservar os valores do candomblé da Bahia."
Esboços
.
Sua mulher durante cinqüenta anos, a argentina Nancy, com quem teve dois filhos, o artista plástico Ramiro e a bióloga Solange, costumava contar que o marido era um homem de tanta fé que jamais levava papel ou lápis para as cerimônias de candomblé. Achava falta de respeito. Guardava tudo de cabeça e desenvolveu uma memória visual fora do comum.
Dono de uma obra vasta, na qual se estimam cerca de 5.000 trabalhos, entre pinturas, desenhos, esculturas e esboços, Carybé trabalhou com vários materiais.
Criou também esculturas, a vertente menos importante de sua produção, e até esboços de cenas de filmes, como as mais de 1000 que fez para a primeira versão de O Cangaceiro (1953), do diretor Lima Barreto, e ilustrações para livros. Além de Jorge Amado, emprestou seus traços a obras de Rubem Braga e Gabriel García Márquez, entre outros.
Carybé, o nome de um mingau que adorava tanto que o adotou como nome artístico, ainda era Hector quando chegou a Salvador pela primeira vez com um projeto ambicioso: fazer uma reportagem com Lampião. Teve de se contentar em desenhar as cabeças do rei do cangaço e seus capangas, já decapitadas.
Sua família morava no Rio e ele já tinha no currículo trabalhos em publicidade para jornais de lá, de São Paulo e de Buenos Aires, além de ter pintado muitos cartazes de rua. Já se considerava um "branco suspeito", como dizia. Ouvira dizer que na sua família (mãe gaúcha, pai italiano) havia uma tia preta que até fumava cachimbo. Sua morenização parecia uma fatalidade.
Com uma carta do escritor Rubem Braga ao então secretário de Educação da Bahia, Anísio Teixeira, em 1950, Carybé arrumou o emprego que pediu a Deus: desenhar cenas baianas.
"Foi a sopa no mel. Nunca mais fui embora. A Bahia tem tudo que um pintor procura, luz, água, mar aberto, a gente sempre vê o corpo humano funcionando", contou.
No mesmo ano conheceu o marchand Valdemar Szaniecki, que mais tarde colocou suas obras numa galeria de São Paulo ao lado das de Mário Gruber, Di Cavalcanti, Aldemir Martins, Manabu Mabe e Clovis Graciano.
Com o passar dos anos, os trabalhos de Carybé não pararam de se valorizar e ele passou a viver só de arte. "Um quadro grande meu vale 10000 dólares", orgulhava-se ele, no começo deste ano, embora alguns possam chegar a até 30000. Para ele, não tinha muita importância. "A economia é a peste negra. Nada sei sobre ela", dizia.
Falsificações
No começo dos anos 80, diante da valorização crescente de sua obra, houve um derrame de quadros falsos atribuídos a ele em Salvador. As telas, com figuras chapadas na praia ou em casarios coloniais, eram vendidas por um quarto do preço de tabela. Com o passar do tempo, os larápios trocaram de alvo, preferindo falsificar artistas mais caros, como Di Cavalcanti e Guignard.
No decorrer da vida, Carybé foi muito pouco premiado primeiro lugar em desenho numa bienal de São Paulo e por duas vezes sala especial em outras bienais. Gostava de pintar, mas não de ficar expondo, "emoldurar quadros, fazer catálogos, dar entrevistas, essas coisas aborrecidas".
Para ele, a única coisa insuportável na vida era ficar parado, esperando um estalo de criatividade. "Inspiração é besteira", achava.
Fotos: Lalo de Almeida
Cabeças do filho-de-santo Abia
no rito de iniciação do candomblé
e figura feminina de costas: traço telegráfico
.
.
Um comentário:
Adorei ler sobre Carybé !
Bom dia, Corujinha !
Postar um comentário