Se bem me recordo, um colega de turma emprestou-me este livro tinha eu 15 anos. Comprei-o depois, mais tarde, emprestei-o e nunca o reavi. Foi-me oferecido por uma grande amiga em 2002. Um livro que marcou a minha tomada de consciência sobre as relações amorosas, quando ainda vivia na ignorância das mesmas. Uma história sobre pessoas que arriscam sair da fila e partir em direcção ao desconhecido. Não apenas Sabina, aparentemente a mais ousada das personagens, mas também todos os outros, mergulhados numa época confusa de ameaças de guerra e censura. Personagens menos intelectualizadas do que possamos imaginar dão corpo a histórias que, para alguns, nunca passarão de fantasias de vidas diferentes, e, para outros, são um retrato quase fiel das venturas e desventuras vividas no seio de uma sociedade mais ou menos moralista e limitada. Poderá um livro destes ser, meramente, um entretenimento? Poderá ser ignorado? As questões que este romance levanta são bem mais do que as respostas. Gostaria de aproveitar a deixa para vos falar de uma pequena teoria pessoal e perfeitamente transmissível (haja quem tenha percebido o mesmo que eu e talvez há mais tempo). Encontrei alguns paralelos entre a história de Kundera e o filme de 1962 realizado por François Truffaut, Jules et Jim. Em vez de vos maçar com um texto teórico deixo-vos as palavras, nomes próprios e conceitos abordados por Truffaut e mais tarde por Kundera (não será difícil pela cronologia perceber quem se inspirou, e muito bem, em quem):
- Tomas (Catherine, no filme de Truffaut interpretada por Jeanne Moreau, numa sequência logo no início do filme decide vestir-se de homem e sair com Jules e Jim para ver até que ponto as pessoas na rua a confundiam de facto com um homem. Esse "disfarce" chama-se Tomas, o nome de uma das principais figuras do livro de Kundera);
- Tereza é nome da mulher de Tomas em Kundera e foi uma das paixões de Jules ("la locomotive") antes de conhecer Catherine;
- Sabina (o nome de uma das personagens femininas do romance de Kundera e nome da filha de Catherine e Jules, no filme de Truffaut);
- o chapéu de coco que aparece estrategicamente nas duas histórias (mais explorada a sua simbologia no livro);
- o léxico de palavras mal entendidas (no romance aparece-nos como uma tentativa de aproximação aos significados diferentes que Sabina e Franz dão às mesmas coisas e no filme Catherine e Jules discutem sobre o facto de existirem palavras que numa língua são do género feminino e noutra do género masculino);
- o próprio enredo das duas histórias, marcadamente centrado na temática da efemeridade das relações e a entrega a várias paixões em simultâneo;
- Catherine, em Truffaut, é, nas palavras do narrador, "a mulher que se entrega, mentalmente, a um desconhecido" e, para a Sabina de Kundera, "nada há de mais belo do que partir em direcção ao desconhecido".
Aqui estão alguns excertos do romance de Milan Kundera para despertar a curiosidade dos que ainda não o leram ou fazer recordar aos que já o conhecem:
"No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade."
(...)
"Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que mal conhecia. Parecia uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas de um rio para ele recolher na margem da sua cama."
(...)
"Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver."
(...)
"Tomas ainda não sabia que as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora."
(...)
"Mesmo presa da maior agitação, nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomas contava-lhe em voz baixa contos que inventava só para ela, pequenos nadas, coisas tranquilizantes ou divertidas que ia repetindo num tom monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavam-se em visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomas tinha um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre no exacto segundo que ele escolhera para isso."
(...)
"O acaso tem destes sortilégios, a necessidade, não. Para um amor se tornar inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis."
(...)
"Poderia dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza, mas, em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela."
(...)
"No chão, ao pé do espelho, havia um velho chapéu de coco enfiado numa cabeça postiça. Baixou-se, apanhou-o e pô-lo na cabeça. A imagem do espelho transformou-se imediatamente; agora, era a imagem de uma mulher em roupa interior, bela inacessível, fria, com um chapéu de coco completamente despropositado na cabeça. Estava de mão dada com um senhor de fato cinzento e de gravata."*
(...)
"Para Sabina, não há nada mais belo do que partir para o desconhecido."
A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera, 1983.
escrito por debbie harry
- Tomas (Catherine, no filme de Truffaut interpretada por Jeanne Moreau, numa sequência logo no início do filme decide vestir-se de homem e sair com Jules e Jim para ver até que ponto as pessoas na rua a confundiam de facto com um homem. Esse "disfarce" chama-se Tomas, o nome de uma das principais figuras do livro de Kundera);
- Tereza é nome da mulher de Tomas em Kundera e foi uma das paixões de Jules ("la locomotive") antes de conhecer Catherine;
- Sabina (o nome de uma das personagens femininas do romance de Kundera e nome da filha de Catherine e Jules, no filme de Truffaut);
- o chapéu de coco que aparece estrategicamente nas duas histórias (mais explorada a sua simbologia no livro);
- o léxico de palavras mal entendidas (no romance aparece-nos como uma tentativa de aproximação aos significados diferentes que Sabina e Franz dão às mesmas coisas e no filme Catherine e Jules discutem sobre o facto de existirem palavras que numa língua são do género feminino e noutra do género masculino);
- o próprio enredo das duas histórias, marcadamente centrado na temática da efemeridade das relações e a entrega a várias paixões em simultâneo;
- Catherine, em Truffaut, é, nas palavras do narrador, "a mulher que se entrega, mentalmente, a um desconhecido" e, para a Sabina de Kundera, "nada há de mais belo do que partir em direcção ao desconhecido".
Aqui estão alguns excertos do romance de Milan Kundera para despertar a curiosidade dos que ainda não o leram ou fazer recordar aos que já o conhecem:
"No mundo do eterno retorno, todos os gestos têm o peso de uma insustentável responsabilidade."
(...)
"Sentiu então um amor inexplicável por essa rapariga que mal conhecia. Parecia uma criança que alguém pusera numa cesta untada com pez e abandonara às águas de um rio para ele recolher na margem da sua cama."
(...)
"Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver."
(...)
"Tomas ainda não sabia que as metáforas são uma coisa perigosa. Com as metáforas não se brinca. O amor pode nascer de uma única metáfora."
(...)
"Mesmo presa da maior agitação, nos braços dele, a calma acabava sempre por chegar. Tomas contava-lhe em voz baixa contos que inventava só para ela, pequenos nadas, coisas tranquilizantes ou divertidas que ia repetindo num tom monocórdico. Na cabeça de Tereza as palavras transmutavam-se em visões confusas que a transportavam ao primeiro sonho. Tomas tinha um poder absoluto sobre o seu sono e Tereza adormecia sempre no exacto segundo que ele escolhera para isso."
(...)
"O acaso tem destes sortilégios, a necessidade, não. Para um amor se tornar inesquecível é preciso que, desde o primeiro momento, os acasos se reúnam nele como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis."
(...)
"Poderia dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza, mas, em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela."
(...)
"No chão, ao pé do espelho, havia um velho chapéu de coco enfiado numa cabeça postiça. Baixou-se, apanhou-o e pô-lo na cabeça. A imagem do espelho transformou-se imediatamente; agora, era a imagem de uma mulher em roupa interior, bela inacessível, fria, com um chapéu de coco completamente despropositado na cabeça. Estava de mão dada com um senhor de fato cinzento e de gravata."*
(...)
"Para Sabina, não há nada mais belo do que partir para o desconhecido."
A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera, 1983.
escrito por debbie harry
Um comentário:
Socorro:
A Insustentável Leveza do Ser é um dos meus filmes prediletos junto com A Liberdade É Azul e Indochina. Parabéns pela postagem!
Abraços
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