Por Sérgio de Castro Pinto
"A Rua do Padre Inglês" (Editora 7 Letras, Rio de Janeiro, 2006), de Everardo Norões, é um livro que restaura e fortalece a crença dos leitores na poesia. E que enseja, ao poeta que o leu, a possibilidade de extrair dos seus poemas outros poemas, tal o clima de congraçamento, de afinidade eletiva, que se estabelece entre Everardo Norões e os oficiais do mesmo ofício.
Quer dizer: quem faz da poesia uma verdadeira profissão de fé, tem tudo para se regozijar com um livro que demarca o seu próprio espaço ante a pasmaceira quase generalizada em que se debate a poesia brasileira contemporânea. E, mais do que isso, tem tudo para se nutrir e se abastecer dos seus poemas, uma vez que "A Rua do Padre Inglês" também dialoga com os melhores poetas de todos os tempos e lugares. Daí a ressonância, nesse livro, de Mauro Mota, de Carlos Pena Filho, de Fernando Pessoa e de um certo Jorge de Lima, sobretudo nos sonetos de extração surrealista, a exemplo do belíssimo "Soneto I": "Agonizavam os rastros de novembro./ E os meus ossos, cansados das neblinas,/ doíam, no concerto das esquinas/ da cidade, onde um dia, ainda me lembro,// penetrou-se de escuro a minha alma,/ quando um cão, a ladrar contra o sol-posto,/ mordeu o lado oculto do meu rosto/ e deixou seus sinais à minha palma// Lembro-me que era de tarde. Ainda chovia./ O eco dos espelhos conduzia/ meus passos que jaziam pelas ruas.// Havia o som da água que caía./ E no horizonte, além da agonia,/ um cemitério de meninas nuas".
Fique claro, porém, que Everardo Norões não se mostra submisso no diálogo que mantém com os poetas de suas "afinidades eletivas", pois, diluindo as influências e transformando-as em confluências, ele imprime aos seus textos a marca e o sinete de sua individualidade criadora.
Há de se louvar, ainda, o lirismo que perpassa a maioria quase absoluta dos seus poemas, procedimento que o põe à margem de todos quantos, de forma equivocada, radicam-se exclusivamente na poética, priorizando, assim, uma dicção que sempre propugna em prol do estilo. Em Norões, felizmente, a técnica está a serviço da emoção, como se pode observar no também belíssimo "Exercício de Redação", dedicado ao Prof. José Newton Alves de Sousa: "No papel almaço,/ trinta linhas acesas// E um vulto a nos ditar/ perífrases e estrofes/ no silêncio da sala./(As três naus das metáforas/ desatam suas asas).// No papel almaço,/ as mesmas trinta linhas/ invadem nossa fala.// O vulto nos ensina/ os sóis da metonímia:/ o vocábulo do fogo/ queima o branco da folha./ (A planta noturna,/ que sua mão recolhe,/ nas entrelinhas/ dorme).// O branco persegue/ sua lição de insônia:/ aquela que conduz/ ao mesmo paralelo/ do lugar onde o sonho/ inverte o seu império.// Dessoletro-me sozinho/ neste canto de sala./ O vulto vem e espreita./ Mais nada".
"Exercício de Redação" é um comovido e comovente tributo ao Prof. José Newton Alves de Sousa, que, à semelhança do Willie Levin da poesia de João Cabral de Melo Neto, testemunha, espiona, referenda ou não a linguagem de Everardo Norões. Ou seja: nessa guerra aparentemente sem testemunhas que é o ato de escrever, o poeta de "A Rua do Padre Inglês" não se "dessoletra" sozinho, como de resto nenhum artista o faz, pois, ao sabor de seus gostos e até de suas idiossincrasias, conta com aliados que o ciceroneiam através dos caminhos sempre tortuosos da criação.
Não tenho dúvidas: "A Rua do Padre Inglês" já se constitui num ponto de referência obrigatório entre os livros lançados neste ano editorial que ora se inicia.
Resenha de A rua do Padre Inglês (28/05/07)
Por José Mário Rodrigues
Quando gosto muito de um poema acabo memorizando-o até sem muito esforço. Datas de aniversário de amigos, nome de ex-colegas de universidade, nomes de ruas e outras coisas mais me deixam enrolado. Os versos, ao contrário, me vêm de mansinho, um após outro, mesmo que o poema seja extenso.
O primeiro poema que li do livro A Rua do Padre Inglês, de Everardo Norões, foi Réstias do muxarabiê. Fiquei encantado, comecei a memorizá-lo e enquanto não o fixava não continuei a leitura da obra. Só depois vi outros belos poemas da lavra criativa desse poeta maduro, discreto, sem estrelismo, com ar de sertanejo desconfiado, que não espera muito de ninguém e que escreve preciosidades assim: “Rolar dentro de si/ como pedras no poço/ Do arco do corpo/ desencadear o sopro/ Avistar/ onde o olhar não alcança/ ler os passos de Deus/ dentro da dança.”
Lançado no ano passado pela editora 7Letras, do Rio de Janeiro, A Rua do Padre Inglês é um tom a mais na poesia pernambucana, embora o seu autor seja um cearense do Crato que se fixou em Pernambuco
Se o livro não foi comentado como merecia, é porque as obras, entre nós, não têm sido analisadas, mas apenas alvo de notas e resenhas sem profundidade. E mais ainda, há um silêncio em relação a poetas, escritores, pensadores que nos cercam. Depois que escrevi neste jornal sobre a filósofa Maria do Carmo Tavares de Miranda, algumas pessoas me perguntavam se ela estava viva. Felizmente a Continente Multicultural – a melhor revista que surgiu nesses últimos anos no Recife – publicou um perfil da ex-assistente de Martin Heidegger, que está em plena atividade intelectual e fazendo planos para divulgação dos seus inéditos.
A situação incômoda em que vivemos não atinge a produtividade de nenhum escritor, pelo menos dos que conheço. A repercussão ou não de um livro está em outra ordem de valor, até mesmo de desvalor, de desinteresse pela literatura e da ampliação da mediocridade que tomou conta da “pátria amada idolatrada”.
Everardo Norões é um poeta definitivo e domina o verso com a desenvoltura dos grandes mestres. Dos que não precisam avançar por artifícios de linguagem tão comuns aos que cultivam os modismos destituídos de emoção e que possuem a frieza dos pisos de mármore. Isto que estou dizendo não é elogio fofo nem “compadrismo literário”, para usar uma expressão do poeta e crítico José Rodrigues de Paiva. Li o livro e mostro os versos. Vejam se não tenho razão:
“O que será de mim/ quando os besouros esquecerem as lâmpadas dos postes/ ou o vento passar sem varrer nossas cinzas?... Sentado neste banco/ doem-me as réstias do muxarabiê./ Porque tudo dói/ na solidão desta casa/ onde seqüestro meu corpo/ e me abismo de Tuas alturas.”
Resenha de A rua do padre inglês / Blog Acervo da Sexta (16/04/2008)
A TÉNÉBREUSE UNITÉ DE UMA POESIA ALÉM
Por Cristiano Ramos
Sobre o poeta Everardo Norões e seu livro A rua do Padre Inglês. Uma obra que se propõe ir além
Comme de longs échos qui de loin se confondent
Dans une ténébreuse et profonde unité,
Vaste comme la nuit et comme la clarté,
Les parfums, les couleurs et les sons se répondent.
Como os ecos ao longe confundem seus rumores
Na mais profunda e tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Harmonizam-se os sons, os perfumes, as cores.
Baudelaire
Para o leitor mais agudo, memórias vividas e lidas se confundem como fotografias misturadas em um baú. Mas, ao mergulhar na vasta poesia contemporânea, não raramente há quem sinta o desolamento de não reconhecer (entre tantos versos) a grandeza daquelas imagens que se destacaram nas leituras de uma vida inteira.
Everardo Norões desenterra de sob os seixos esta razão maior da poesia. A rua do Padre Inglês nos traz um apanhado de sua obra, uma amostra de sua argamassa poética onde se coadunam tradição e moderníssimas demandas existenciais – obra que, por motivos decerto injustificáveis (embora presumíveis), segue desconhecida por tantos.
Uma proposta perpassa todo o livro: recuperar o sentido poético da transcendência. Não aquela de uma conservadora burguesia inglesa imersa em misticismo em pleno século XIX, mas a transcendência clássica, em que estética e filosofia não se deixam reduzir a efêmeros empreendimentos. Os versos de Everardo Norões querem mais, buscam além. Embora nunca uma criação distanciada da paisagem ou dos dramas que a circundam.
O meu país
é uma vereda de loucos.
Linha de serranias
degolando o sol.
cheiro de cana azeda,
a palma de buritis,
relho de sesmarias.
(País)
Leitor e pensador atento de nossa literatura, o autor de A rua do Padre Inglês calcorreia a pauta do dia. Através de sua postura convicta, dialoga com questões atualíssimas de nossa produção. Não foge, por exemplo, ao desafio que hoje nos impõe a ruptura modernista: como não negar a herança e, ao mesmo tempo, fugir da armadilha de tradicionalizar o que antes foi inovação contestadora, transgressão? Embora Norões dificilmente aceitasse a comparação, visto que rejeita a própria noção de pós-modernismo, seus poemas vencem com enganosa facilidade esse obstáculo.
Eis fragmento onde enfrenta a pergunta que costuma afundar pencas de jovens poetas em cansativas tentativas visuais, lugares-comuns ou gritos inócuos:
O que será de mim
no sossego dessas praças mortas,
na angústia dos estacionamentos,
no frio das salas de espera,
quando o outro,
o sempre múltiplo,
pergunta:
O que será de ti?
O que será de mim
quando os besouros esquecerem
as lâmpadas dos postes
ou o vento passar sem varrer nossas cinzas?
(As réstias de muxarabiê)
Mas esqueçamos os rótulos ou debates categorizantes. O que pesa são suas imagens, além do demasiado humano. Nenhum baú, por mais vasto e rico, amontoará com indiferença os seus fractais, que se nos apresentam com assustadora elegância: “Pelo mergulho / das sombras, / calculo / o itinerário da luz”.
São versos que requerem do leitor um ritmo, respeito às intenções sonoras, e tempo para dar nitidez aos significados. Pressa ou pobreza na entrega resultará em desperdício da obra. Assim como, aos interessados em buscar o significado das tantas referências presentes no texto, a experiência de cada página pode se desdobrar em inúmeras outras descobertas. Ex-exilado político, Norões foi obrigado a conhecer outros países, descobrindo-se um irremediável interessado nas mais diversas culturas. Durante todo o livro, somos convidados a viajar com o autor, principalmente por referências orientais, como nas belas estrofes dedicadas àquela conhecida como a maior das cantoras árabes:
Era como se um Deus houvesse sucumbido
e uma única mulher lamentasse seus remorsos.
E o céu brilhasse, entre as areias,
nas cinzas de seus ossos.
Era como se um Deus houvesse caminhado
no fio dos sentidos, e ao seu lado
um peregrino cego lhe guiasse
e, súbito,
calasse.
Era como se um Deus houvesse se encontrado
na única pedra de um deserto.
E ao sol nos doasse
a outra face.
(Oum Kalsoum)
Por tudo isso, o próprio poeta cria exigências à sua obra. Não lhe cabe mais captar o instante sem maiores intenções, ou se desviar da grandeza que os versos parecem lhe exigir. Daí, destoa uma peça como Vinho Branco Seco (“Entre o silêncio obsceno / e o cálice de vinho seco / perco-me na sede / do teu asco”). Mesmo que sejam motivos e imagens dignas de atenção, há inúmeros outros autores para lhes perpetuar a imagem e repetir fórmulas.
Todavia, qualquer “senão” apenas ressalta todo o mais. Uma poesia que nos traz a densa atmosfera baudelairiana, as desconcertantes correspondências, a metafísica comprometida com nossas infindáveis lacerações. Aquele acostumado com essa ténébreuse unité, reencontrará neste pernambucano-do-mundo aquele negativismo, a sombria decadência onde não existem copas ou telheiros para nos resguardar. Momento nenhum de Everardo Norões há de acalentar espíritos desejosos por uma temporada no Paraíso. O que não quer dizer que, envoltos em “sombra” e “escuridão", seus versos nos compelem a desistir. Antes, lançam-nos à caminhada dostoievskiana, onde o coração humano é o campo de batalha, certos de que a dor apenas ratifica nossa existência e sublinha o que de sensível ainda nos acompanha.
Agonizam os rastros de novembro.
E os meus ossos, cansados das neblinas,
doíam, no concerto das esquinas
da cidade, onde um dia, ainda me lembro,
Penetrou-se de escuro a minha alma,
quando um cão, a ladrar contra o sol-posto,
mordeu o lado oculto do meu rosto
e deixou seus sinais à minha palma.
(Soneto I)
“Na linha negra que decepa o sol trafegam infinitas palavras”... E estas linhas são afiadas, este sol é fecundo. Não de forma imprudente – embora com o entusiasmo típico dos textos de apresentação e prefácios – Marco Lucchesi afirma que “seria preciso escrever quase um ensaio para dizer as afinidades que nos cercam e transcendem, as palavras muitas que guardamos e os silêncios que transmitimos”. Todavia, nem a mais fria análise seria indiferente ao empenho autêntico de Everardo Norões em acrescentar, não se rendendo às correntes e modismos.
Em tempos de antologias circulares e redes de afinidades que confundem crítica com reverberação laudatória, difícil esperar que o autor de A rua do Padre Inglês conquiste maiores espaços, senão nos amplos átrios de consciências desejosas em extrair dos contraditórios o melhor da produção contemporânea.
Cristiano Ramos é jornalista e crítico literário. Editor deste blog, além de diretor e apresentador do programa Opinião Pernambuco.
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