Símbolos do psiquismo humano, as mandalas têm o poder de nos levar à introspecção e nos colocar em contato com os níveis mais profundos da nossa consciência.
Texto: Paulo Urban/Ilustrações: Mônica Facó- Todas as ilustrações deste artigo, com exceção da abertura (de Rogério Borges), são de Mônica Facó, que trabalha com artesanato gráfico, mandalas e cartões; Paulo Urban é médico psiquiatra, acupunturista e terapeuta junguiano
Mandala é um termo sânscrito, que se traduz por círculo mágico. Mas, na tradição hindu, seu conceito expressa muito mais do que as palavras que possam defini-lo. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda aceita o termo, registra-o como substantivo feminino e o explica como imagem do mundo e instrumento para a meditação. Em seu estado original a palavra é oxítona de gênero masculino, pronunciada abertamente: man-da-lá. Não somente designa um mantra, mas o vivifica por ser ela própria o movimento.
Mantras são sons vocálicos, puros ou combinados, passados dos mestres aos discípulos. Costumam ser verbalizações secretas de poder, transmitidas como fórmulas rituais particulares, usadas para fins iniciáticos; mas há mantras de domínio geral, aplicados à coletividade, especialmente devotados ao despertar psíquico, ou proferidos em prol da paz ou saúde do planeta.
Quando escritos, os mantras assumem a forma de seu equivalente gráfico, os iantras, figurações que tendem à simetria geométrica e se comportam também como raízes gráficas (chamadas mula-iantras) dos diferentes mantras e demais termos que deles se derivam. Os iantras nada mais são que o suporte, o arcabouço linear dos mantras. Mas estão muito além do conjunto correlato de letras que se combinam para criar vocábulos nos idiomas ocidentais, já que o hinduísmo considera que as palavras têm vida, que toda vogal é extensão das notas musicais da voz divina. Os mantras, portanto, são a alma dos iantras, o espírito por detrás da matéria que o Verbo cria e denomina.
Representações mandálicas são sublimes; suas formas representam a combinação perfeita entre os mantras e seus respectivos iantras. No tantrismo, prestam-se à meditação; comumente as vemos pintadas ou riscadas no chão, feitas de sementes ou grãos de areia, usadas para delimitar locais sagrados, como o altar dos templos, ou áreas destinadas a procedimentos ritualísticos específicos.
Assim como o fogo, as mandalas têm ainda a propriedade de nos prender a atenção, de nos convidar à introspecção, à percepção de seus aspectos, de seu arranjo harmônico, que se distribui num quatérnio espacial.
Tal como a água, deleitam-nos a ponto de nos fazer tranqüilos; propiciam à mente que se distancie dos problemas imediatos, induzindo-a ao exercício da contemplação. Efeito semelhante ocorre quando observamos peixes num aquário em seu vaivém constante, em sua dança circular que nos acalma. Mandalas são, portanto, todas as formas que nos permitem penetrar no jogo das vibrações que constituem o universo. São portas quânticas para outros níveis de consciência, verdadeiras bases de lançamento de nossas naves Enterprises, no seio das quais viajamos a lugares onde nenhum homem jamais esteve.
As mandalas selam o sacramento de nossa união com o cosmos. São veículos para o religamento de nossa consciência com a fonte absoluta de onde provimos. Na tradição tibetana, são guias imaginários e provisórios da alma; orientam-nos em nossa prática meditativa e transmitem o equilíbrio com que se distribui a essência divina, cuja ubiqüidade jamais permite que a capturemos em nossas mãos. Concordante é o pensamento do filósofo medieval Nicolau de Cusa (1400-1464): “Deus é uma esfera cujo centro está por toda parte, embora suas circunferências não O delimitem em parte alguma.”
Do círculo divino, forma absoluta, fechada em si, emana o quadrado, o quarto dos símbolos primordiais.
O círculo é o terceiro dos quatro símbolos fundamentais. Comecemos pelo ponto, virtualidade sem a qual o mundo inteiro não estaria manifesto; de sua natureza se estende a cruz, segundo elemento, que, ao girar sobre si mesma, produz o círculo. Este, por ser perfeito, sem começo, meio ou fim, diz respeito ao mundo divino, ou à imagem de Deus quando quer que O representemos pelo oroboro (a cobra que morde o próprio rabo), a simbolizar a vida que, perenemente, se devora e se transforma. Do círculo divino, forma absoluta, fechada em si, emana o quadrado, o quarto dos símbolos primordiais, representando a Terra e todas as criaturas.
Ancorado sobre seus quatro lados, o quadrado tende à estabilidade, contrastando com o dinamismo da roda ou do círculo, que é puro movimento. Em oposição ao céu, o quadrado designa o plano terreno em que se manifestam todas as coisas criadas. Altares e templos comumente são quadrangulares ou retangulares; sob essas formas também se organizavam as cidades antigas, bem como as fortalezas e os acampamentos militares. No campo das religiões, observemos a Caaba, de Meca, templo máximo do islamismo. A pedra cúbica significa a divindade dando fundamento a toda a humanidade, ao mesmo tempo em que sustenta, feito pilar supremo, a abóbada celeste, outra representação da morada de Deus. Ademais, em época anterior ao Islã, Meca era chamada por Umm-al-Qura, ou “Mãe das Cidades” (Corão, 6, 92 e 42,5), sendo considerada, tal qual o templo apolíneo de Delfos, o Umbigo do Mundo.
Em outros casos, é o círculo que delimita lugares consagrados ao divino, como, por exemplo, o enigmático templo rochoso de Stonehenge, construído, entre 2600 e 1700 a.C., a partir de conhecimentos astronômicos de espantosa precisão. Curiosamente, a palavra inglesa usada para designar igreja, church, provém do escocês antigo kirk, que, além de templo, significa círculo.
Na verdade, toda forma circular, quadrangular ou qualquer outra que insinue a presença de um centro em torno do qual todo um complexo se organiza pode ser tida como uma forma mandálica. Não foge à regra a Távola do Rei Arthur, circular e orientada em torno do Graal, símbolo do ideal comum de integração e transcendência.
Mandalas podem ser consideradas sagradas por tudo isso. Ao sintetizarem os conceitos de mantra e iantra em todas as suas possíveis combinações, revelam, por imagens que nunca se repetem, a infinita variedade do potencial divino. Quando quer que meditemos incursos na harmonia de seus desenhos, mais prontamente nos alçamos em espiral, projetando-nos em torno do rabo da serpente e nas asas da espiritualidade.
A tradição alquímica propõe que os filósofos, mediante a pedra filosofal, ou por meio do elixir da longa vida, atinjam o fulcro do derradeiro mistério oculto na quadratura do círculo. Metaforicamente, “quadrar” o círculo é fazer caber no plano humano (o quadrado) toda a dimensão divina (o círculo).
Muito antes de os alquimistas medievais terem nascido, os pitagóricos (século 6 a.C.), herdeiros dos ritos órficos, viam na tetrakys, ou tétrade sagrada, a base de sua doutrina, que faz do 10 um número perfeito, resulta- do da soma do quatérnio básico (1+2+3+4=10), do qual emana toda e qualquer forma vivente. “O Universo é número”, dizia Pitágoras, que valorizava o 4 como alicerce da vida, e o 3 como a própria divindade. De seu produto (3x4) obtinha-se o número que revelava a totalidade do acerto entre homens e deuses: 12 é o número do todo.
Carl Gustav Jung viu nas mandalas o melhor dos exemplos figurativos daquilo que ocorre em toda a dinâmica psíquica, cuja essência última resta sempre incapturável. Inspirado na máxima citada de Nicolau de Cusa, Jung chamou de selbst o centro organizador da psique, espécie de núcleo atômico psíquico. Traduzido para o inglês por self, o termo encontra em português expressão que muito melhor o representa, o si mesmo. A rigor, na psicologia junguiana, tal instância é o ponto central de todo o psiquismo, mas também sua esfera inteira, que abrange o mundo inconsciente bem como o consciente. O ego aqui é mero centro funcional de nossa consciência, a mesma que nos permite dar conta de nossa individualidade.
As mandalas revelam, por imagens que nunca se repetem,
a infinita variedade do potencial divino.
Como todo arquétipo, o si mesmo é essencialmente incognoscível. Dele sabemos apenas empiricamente e por vias indiretas. São nossos sonhos que nos contam de sua existência; o percebemos, nos mitos e contos de fada, sempre disfarçado por detrás dos símbolos da totalidade, como o círculo, a cruz e o quadrado; ou por meio de contrastes que expressem a coniunctio opositorum, isto é, a união dos opostos que também se complementam, como é o caso do dia e da noite, do bem e do mal, de yin e yang.
Às vezes, o si mesmo se esconde por detrás de personagens que dinamicamente se encarregam de desenvolver toda uma trama dialética, como ocorre com as duplas Fausto e Mefistófeles, Dom Quixote e Sancho Pança, Peter Pan e o Capitão Gancho, etc. Em outras ocasiões, ele está no personagem axial desses enredos mágicos, quer na figura de um rei, de um profeta, ou projetado sobre um avatar ou mesmo num herói qualquer que, enredado em sua missão lendária, busca vencer obstáculos intransponíveis pelos seres comuns, mediante o que ele reorganiza e salva o mundo onde vive seu drama.
Através dos séculos, a humanidade sempre se mostrou mais ou menos consciente acerca da existência do si mesmo. Entre os egípcios há o conceito Ba como instância além da alma comum, correspondente ao daimon dos gregos, aspecto que Sócrates admitia aconselhá-lo sempre, em suas horas mais difíceis. Em sociedades e culturas primitivas, a idéia está incutida ora num espírito protetor da natureza, ora sobre a imagem de algum animal, ou num sábio antepassado cuja função, depois de morto, é a de orientar sua tribo.
Jung viu nas mandalas o melhor dos exemplos figurativos daquilo que ocorre em toda a dinâmica psíquica.
Segundo Jung, há duas razões principais pelas quais podemos perder contato com o si mesmo que nos regula e nos tempera, o que compromete a distribuição homogênea e espontânea da energia anímica por toda a mandala de um psiquismo saudável.
O primeiro obstáculo surge sempre que nos vemos tomados por impulsos instintivos emocionalmente fortes, que nos levam a reagir visceralmente. Até os animais comportam-se assim, quando, por exemplo, excitados sexualmente, esquecem-se até da fome, ou descuidam-se de suas defesas, em detrimento da conduta habitualmente tomada para sua segurança. São inúmeros os povos indígenas em que situações de perturbação mental, associadas ou não às doenças físicas, são interpretadas pelos xamãs como um quadro de “perda da alma” – nada mais, segundo a psicologia analítica, do que o resultado da unilateralidade do funcionamento psíquico, capaz de condensar demasiada energia em torno deste ou daquele aspecto num processo neurótico e gerador de complexos.
A humanidade sempre se mostrou mais ou menos consciente acerca da existência do si mesmo.
O segundo empecilho é propriamente uma condição oposta à primeira; advém da cristalização excessiva do ego, que adora se prender ao mundo da realidade objetiva e esquecer-se de todo o resto, dificultando a percepção dos estímulos inconscientes provenientes do centro psíquico interior. Claro, precisamos de um ego conscientemente voltado às tarefas habituais da vida. Mas ele deve ser bem disciplinado e nos levar às realizações pessoais sem cair no abismo de julgar que só a realidade objetiva possa locupletar as necessidades da alma. Por essa razão, muitas vezes acordamos ungidos pela bênção de certos sonhos significativos, cuja função é a de restaurar a receptividade cotidianamente perdida e restabelecer o diálogo necessário entre a consciência e o mundo psíquico mais profundo. Sempre que nos privamos prolongadamente desse intercâmbio entre o ego e o si mesmo, ainda que não o percebamos, adoecemos; e o surgimento de sintomas neuróticos ou psicóticos, mesmo doenças orgânicas das mais simples às incuráveis, passa a ser mera questão de tempo.
Nas paisagens de nossos sonhos, nas visões proféticas, a estrutura mandálica está sempre presente.
Jung elegeu a mandala por excelência adequada para simbolizar o psiquismo; isso porque nas representações mitológicas do si mesmo está presente, quase sem exceção, a estrutura quaternária como arcabouço nuclear da alma. Mandalas multiplicam-se pelo mundo. Todos os povos do planeta, de todas as épocas e lugares, expressam-nas em sua arte, bem como nos enredos de seus mitos.
No Oriente, elas são usadas para recompor o ego diante da majestade do eu interior. A contemplação dessas imagens homogêneas, organizadas em torno de um centro, tende a facilitar, por analogia, a emergência de processos inconscientes, capazes de permear de paz interior a mente que deseja vislumbrar a ordem subjacente no cosmos, ou que queira abstrair da contemplação algum significado para a existência ou para o milagre da vida.
Nas paisagens de nossos sonhos, nas visões proféticas, nos contos de fadas, a estrutura mandálica está sempre presente. Há exemplos por toda a parte. Nossa Via Láctea, galáxia espiralada com dois braços que se evolvem a partir de um núcleo, é uma assombrosa mandala. O Sistema Solar é núcleo da mandala que o circunda de planetas; do mesmo modo, elétrons viajam a 960 km/s “presos” a uma esfera mandálica atômica imaginária. Nossos olhos, globos mandálicos, enxergam o mundo por uma lente mandálica cristalina ovalada, coberta pela colorida e radiada mandala da íris. A Terra, aparentemente esférica, é mandala que orbita. O cérebro, composto por dois hemisférios mandálicos, com partes anterior e posterior, mantém o padrão. O mesmo podemos dizer do coração humano, palácio da alma descrito em quatro câmaras. Os pássaros costumam fazer ninhos circulares, e as aranhas tecem mandalas de extraordinário requinte nos cantos das cavernas.
Mandalas fazem isto: propiciam iluminação àquelas mentes que diante delas silenciam.
Mandalas estão abundantemente representadas no Ocidente principalmente desde a Idade Média. As rosáceas dos vitrais das catedrais de Chartres e Notre-Dame são mandalas translúcidas, inspiradoras da paz interior que deve estar presente nos campos religiosos da mente. Aliás, todas as cruzes, religiosas ou não, incluindo a suástica, são mandalas; a estrela de Davi com seis pontas idem, reforçando o mistério do cruzamento divino e humano pelo entrelaçado de seus dois triângulos equiláteros. Os tabuleiros dos milenares jogos esotéricos (xadrez, go, damas, gamão, etc.) são espaços mandálicos sobre os quais se reproduz o simulacro da dança da vida. Cartas de baralho são igualmente mandalas. No tarô, ela acha-se delineada em todos os arcanos, ressaltada nos maiores, principalmente no Mago, na Justiça, na Roda da Vida, no Enforcado, na Temperança, na Estrela (onde pela primeira vez surgem juntos os quatro elementos), no Julgamento e no Mundo. Na abóbada celeste, projetamos a mandala zodiacal. Nos mitos, as mandalas do destino humano. Um deles, o de Hermes, conta-nos que em torno de seu caduceu estão duas serpentes abraçadas, uma com a função de acompanhar as almas em sua viagem ao reino de Hades, mundo dos mortos; a outra com função psicagógica, a de reconduzir as almas mortas à luz da vida, quando devem renascer. Mandalas fazem isto: propiciam iluminação às mentes que diante delas silenciam e, a partir da pacificação dos indivíduos comuns, proporcionam paz ao mundo, tão carente dessa dádiva.
Texto: Paulo Urban/Ilustrações: Mônica Facó- Todas as ilustrações deste artigo, com exceção da abertura (de Rogério Borges), são de Mônica Facó, que trabalha com artesanato gráfico, mandalas e cartões; Paulo Urban é médico psiquiatra, acupunturista e terapeuta junguiano
Mandala é um termo sânscrito, que se traduz por círculo mágico. Mas, na tradição hindu, seu conceito expressa muito mais do que as palavras que possam defini-lo. O dicionário de Aurélio Buarque de Holanda aceita o termo, registra-o como substantivo feminino e o explica como imagem do mundo e instrumento para a meditação. Em seu estado original a palavra é oxítona de gênero masculino, pronunciada abertamente: man-da-lá. Não somente designa um mantra, mas o vivifica por ser ela própria o movimento.
Mantras são sons vocálicos, puros ou combinados, passados dos mestres aos discípulos. Costumam ser verbalizações secretas de poder, transmitidas como fórmulas rituais particulares, usadas para fins iniciáticos; mas há mantras de domínio geral, aplicados à coletividade, especialmente devotados ao despertar psíquico, ou proferidos em prol da paz ou saúde do planeta.
Quando escritos, os mantras assumem a forma de seu equivalente gráfico, os iantras, figurações que tendem à simetria geométrica e se comportam também como raízes gráficas (chamadas mula-iantras) dos diferentes mantras e demais termos que deles se derivam. Os iantras nada mais são que o suporte, o arcabouço linear dos mantras. Mas estão muito além do conjunto correlato de letras que se combinam para criar vocábulos nos idiomas ocidentais, já que o hinduísmo considera que as palavras têm vida, que toda vogal é extensão das notas musicais da voz divina. Os mantras, portanto, são a alma dos iantras, o espírito por detrás da matéria que o Verbo cria e denomina.
Representações mandálicas são sublimes; suas formas representam a combinação perfeita entre os mantras e seus respectivos iantras. No tantrismo, prestam-se à meditação; comumente as vemos pintadas ou riscadas no chão, feitas de sementes ou grãos de areia, usadas para delimitar locais sagrados, como o altar dos templos, ou áreas destinadas a procedimentos ritualísticos específicos.
Assim como o fogo, as mandalas têm ainda a propriedade de nos prender a atenção, de nos convidar à introspecção, à percepção de seus aspectos, de seu arranjo harmônico, que se distribui num quatérnio espacial.
Tal como a água, deleitam-nos a ponto de nos fazer tranqüilos; propiciam à mente que se distancie dos problemas imediatos, induzindo-a ao exercício da contemplação. Efeito semelhante ocorre quando observamos peixes num aquário em seu vaivém constante, em sua dança circular que nos acalma. Mandalas são, portanto, todas as formas que nos permitem penetrar no jogo das vibrações que constituem o universo. São portas quânticas para outros níveis de consciência, verdadeiras bases de lançamento de nossas naves Enterprises, no seio das quais viajamos a lugares onde nenhum homem jamais esteve.
As mandalas selam o sacramento de nossa união com o cosmos. São veículos para o religamento de nossa consciência com a fonte absoluta de onde provimos. Na tradição tibetana, são guias imaginários e provisórios da alma; orientam-nos em nossa prática meditativa e transmitem o equilíbrio com que se distribui a essência divina, cuja ubiqüidade jamais permite que a capturemos em nossas mãos. Concordante é o pensamento do filósofo medieval Nicolau de Cusa (1400-1464): “Deus é uma esfera cujo centro está por toda parte, embora suas circunferências não O delimitem em parte alguma.”
Do círculo divino, forma absoluta, fechada em si, emana o quadrado, o quarto dos símbolos primordiais.
O círculo é o terceiro dos quatro símbolos fundamentais. Comecemos pelo ponto, virtualidade sem a qual o mundo inteiro não estaria manifesto; de sua natureza se estende a cruz, segundo elemento, que, ao girar sobre si mesma, produz o círculo. Este, por ser perfeito, sem começo, meio ou fim, diz respeito ao mundo divino, ou à imagem de Deus quando quer que O representemos pelo oroboro (a cobra que morde o próprio rabo), a simbolizar a vida que, perenemente, se devora e se transforma. Do círculo divino, forma absoluta, fechada em si, emana o quadrado, o quarto dos símbolos primordiais, representando a Terra e todas as criaturas.
Ancorado sobre seus quatro lados, o quadrado tende à estabilidade, contrastando com o dinamismo da roda ou do círculo, que é puro movimento. Em oposição ao céu, o quadrado designa o plano terreno em que se manifestam todas as coisas criadas. Altares e templos comumente são quadrangulares ou retangulares; sob essas formas também se organizavam as cidades antigas, bem como as fortalezas e os acampamentos militares. No campo das religiões, observemos a Caaba, de Meca, templo máximo do islamismo. A pedra cúbica significa a divindade dando fundamento a toda a humanidade, ao mesmo tempo em que sustenta, feito pilar supremo, a abóbada celeste, outra representação da morada de Deus. Ademais, em época anterior ao Islã, Meca era chamada por Umm-al-Qura, ou “Mãe das Cidades” (Corão, 6, 92 e 42,5), sendo considerada, tal qual o templo apolíneo de Delfos, o Umbigo do Mundo.
Em outros casos, é o círculo que delimita lugares consagrados ao divino, como, por exemplo, o enigmático templo rochoso de Stonehenge, construído, entre 2600 e 1700 a.C., a partir de conhecimentos astronômicos de espantosa precisão. Curiosamente, a palavra inglesa usada para designar igreja, church, provém do escocês antigo kirk, que, além de templo, significa círculo.
Na verdade, toda forma circular, quadrangular ou qualquer outra que insinue a presença de um centro em torno do qual todo um complexo se organiza pode ser tida como uma forma mandálica. Não foge à regra a Távola do Rei Arthur, circular e orientada em torno do Graal, símbolo do ideal comum de integração e transcendência.
Mandalas podem ser consideradas sagradas por tudo isso. Ao sintetizarem os conceitos de mantra e iantra em todas as suas possíveis combinações, revelam, por imagens que nunca se repetem, a infinita variedade do potencial divino. Quando quer que meditemos incursos na harmonia de seus desenhos, mais prontamente nos alçamos em espiral, projetando-nos em torno do rabo da serpente e nas asas da espiritualidade.
A tradição alquímica propõe que os filósofos, mediante a pedra filosofal, ou por meio do elixir da longa vida, atinjam o fulcro do derradeiro mistério oculto na quadratura do círculo. Metaforicamente, “quadrar” o círculo é fazer caber no plano humano (o quadrado) toda a dimensão divina (o círculo).
Muito antes de os alquimistas medievais terem nascido, os pitagóricos (século 6 a.C.), herdeiros dos ritos órficos, viam na tetrakys, ou tétrade sagrada, a base de sua doutrina, que faz do 10 um número perfeito, resulta- do da soma do quatérnio básico (1+2+3+4=10), do qual emana toda e qualquer forma vivente. “O Universo é número”, dizia Pitágoras, que valorizava o 4 como alicerce da vida, e o 3 como a própria divindade. De seu produto (3x4) obtinha-se o número que revelava a totalidade do acerto entre homens e deuses: 12 é o número do todo.
Carl Gustav Jung viu nas mandalas o melhor dos exemplos figurativos daquilo que ocorre em toda a dinâmica psíquica, cuja essência última resta sempre incapturável. Inspirado na máxima citada de Nicolau de Cusa, Jung chamou de selbst o centro organizador da psique, espécie de núcleo atômico psíquico. Traduzido para o inglês por self, o termo encontra em português expressão que muito melhor o representa, o si mesmo. A rigor, na psicologia junguiana, tal instância é o ponto central de todo o psiquismo, mas também sua esfera inteira, que abrange o mundo inconsciente bem como o consciente. O ego aqui é mero centro funcional de nossa consciência, a mesma que nos permite dar conta de nossa individualidade.
As mandalas revelam, por imagens que nunca se repetem,
a infinita variedade do potencial divino.
Como todo arquétipo, o si mesmo é essencialmente incognoscível. Dele sabemos apenas empiricamente e por vias indiretas. São nossos sonhos que nos contam de sua existência; o percebemos, nos mitos e contos de fada, sempre disfarçado por detrás dos símbolos da totalidade, como o círculo, a cruz e o quadrado; ou por meio de contrastes que expressem a coniunctio opositorum, isto é, a união dos opostos que também se complementam, como é o caso do dia e da noite, do bem e do mal, de yin e yang.
Às vezes, o si mesmo se esconde por detrás de personagens que dinamicamente se encarregam de desenvolver toda uma trama dialética, como ocorre com as duplas Fausto e Mefistófeles, Dom Quixote e Sancho Pança, Peter Pan e o Capitão Gancho, etc. Em outras ocasiões, ele está no personagem axial desses enredos mágicos, quer na figura de um rei, de um profeta, ou projetado sobre um avatar ou mesmo num herói qualquer que, enredado em sua missão lendária, busca vencer obstáculos intransponíveis pelos seres comuns, mediante o que ele reorganiza e salva o mundo onde vive seu drama.
Através dos séculos, a humanidade sempre se mostrou mais ou menos consciente acerca da existência do si mesmo. Entre os egípcios há o conceito Ba como instância além da alma comum, correspondente ao daimon dos gregos, aspecto que Sócrates admitia aconselhá-lo sempre, em suas horas mais difíceis. Em sociedades e culturas primitivas, a idéia está incutida ora num espírito protetor da natureza, ora sobre a imagem de algum animal, ou num sábio antepassado cuja função, depois de morto, é a de orientar sua tribo.
Jung viu nas mandalas o melhor dos exemplos figurativos daquilo que ocorre em toda a dinâmica psíquica.
Segundo Jung, há duas razões principais pelas quais podemos perder contato com o si mesmo que nos regula e nos tempera, o que compromete a distribuição homogênea e espontânea da energia anímica por toda a mandala de um psiquismo saudável.
O primeiro obstáculo surge sempre que nos vemos tomados por impulsos instintivos emocionalmente fortes, que nos levam a reagir visceralmente. Até os animais comportam-se assim, quando, por exemplo, excitados sexualmente, esquecem-se até da fome, ou descuidam-se de suas defesas, em detrimento da conduta habitualmente tomada para sua segurança. São inúmeros os povos indígenas em que situações de perturbação mental, associadas ou não às doenças físicas, são interpretadas pelos xamãs como um quadro de “perda da alma” – nada mais, segundo a psicologia analítica, do que o resultado da unilateralidade do funcionamento psíquico, capaz de condensar demasiada energia em torno deste ou daquele aspecto num processo neurótico e gerador de complexos.
A humanidade sempre se mostrou mais ou menos consciente acerca da existência do si mesmo.
O segundo empecilho é propriamente uma condição oposta à primeira; advém da cristalização excessiva do ego, que adora se prender ao mundo da realidade objetiva e esquecer-se de todo o resto, dificultando a percepção dos estímulos inconscientes provenientes do centro psíquico interior. Claro, precisamos de um ego conscientemente voltado às tarefas habituais da vida. Mas ele deve ser bem disciplinado e nos levar às realizações pessoais sem cair no abismo de julgar que só a realidade objetiva possa locupletar as necessidades da alma. Por essa razão, muitas vezes acordamos ungidos pela bênção de certos sonhos significativos, cuja função é a de restaurar a receptividade cotidianamente perdida e restabelecer o diálogo necessário entre a consciência e o mundo psíquico mais profundo. Sempre que nos privamos prolongadamente desse intercâmbio entre o ego e o si mesmo, ainda que não o percebamos, adoecemos; e o surgimento de sintomas neuróticos ou psicóticos, mesmo doenças orgânicas das mais simples às incuráveis, passa a ser mera questão de tempo.
Nas paisagens de nossos sonhos, nas visões proféticas, a estrutura mandálica está sempre presente.
Jung elegeu a mandala por excelência adequada para simbolizar o psiquismo; isso porque nas representações mitológicas do si mesmo está presente, quase sem exceção, a estrutura quaternária como arcabouço nuclear da alma. Mandalas multiplicam-se pelo mundo. Todos os povos do planeta, de todas as épocas e lugares, expressam-nas em sua arte, bem como nos enredos de seus mitos.
No Oriente, elas são usadas para recompor o ego diante da majestade do eu interior. A contemplação dessas imagens homogêneas, organizadas em torno de um centro, tende a facilitar, por analogia, a emergência de processos inconscientes, capazes de permear de paz interior a mente que deseja vislumbrar a ordem subjacente no cosmos, ou que queira abstrair da contemplação algum significado para a existência ou para o milagre da vida.
Nas paisagens de nossos sonhos, nas visões proféticas, nos contos de fadas, a estrutura mandálica está sempre presente. Há exemplos por toda a parte. Nossa Via Láctea, galáxia espiralada com dois braços que se evolvem a partir de um núcleo, é uma assombrosa mandala. O Sistema Solar é núcleo da mandala que o circunda de planetas; do mesmo modo, elétrons viajam a 960 km/s “presos” a uma esfera mandálica atômica imaginária. Nossos olhos, globos mandálicos, enxergam o mundo por uma lente mandálica cristalina ovalada, coberta pela colorida e radiada mandala da íris. A Terra, aparentemente esférica, é mandala que orbita. O cérebro, composto por dois hemisférios mandálicos, com partes anterior e posterior, mantém o padrão. O mesmo podemos dizer do coração humano, palácio da alma descrito em quatro câmaras. Os pássaros costumam fazer ninhos circulares, e as aranhas tecem mandalas de extraordinário requinte nos cantos das cavernas.
Mandalas fazem isto: propiciam iluminação àquelas mentes que diante delas silenciam.
Mandalas estão abundantemente representadas no Ocidente principalmente desde a Idade Média. As rosáceas dos vitrais das catedrais de Chartres e Notre-Dame são mandalas translúcidas, inspiradoras da paz interior que deve estar presente nos campos religiosos da mente. Aliás, todas as cruzes, religiosas ou não, incluindo a suástica, são mandalas; a estrela de Davi com seis pontas idem, reforçando o mistério do cruzamento divino e humano pelo entrelaçado de seus dois triângulos equiláteros. Os tabuleiros dos milenares jogos esotéricos (xadrez, go, damas, gamão, etc.) são espaços mandálicos sobre os quais se reproduz o simulacro da dança da vida. Cartas de baralho são igualmente mandalas. No tarô, ela acha-se delineada em todos os arcanos, ressaltada nos maiores, principalmente no Mago, na Justiça, na Roda da Vida, no Enforcado, na Temperança, na Estrela (onde pela primeira vez surgem juntos os quatro elementos), no Julgamento e no Mundo. Na abóbada celeste, projetamos a mandala zodiacal. Nos mitos, as mandalas do destino humano. Um deles, o de Hermes, conta-nos que em torno de seu caduceu estão duas serpentes abraçadas, uma com a função de acompanhar as almas em sua viagem ao reino de Hades, mundo dos mortos; a outra com função psicagógica, a de reconduzir as almas mortas à luz da vida, quando devem renascer. Mandalas fazem isto: propiciam iluminação às mentes que diante delas silenciam e, a partir da pacificação dos indivíduos comuns, proporcionam paz ao mundo, tão carente dessa dádiva.
Um comentário:
Muito legal essa matéria !
Abraços
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