Sagração do Poeta Maldito
(Esta entrevista concedida por Bruno Tolentino a Cláudia Cordeiro Reis, foi publicada em parte na revista Continente Multicultural, em setembro de 2003, n. 33, p.34 a37. Aqui, ela está transcrita sem cortes. Atualizamos apenas a apresentação)
O Lançamento de O Mundo como Idéia, concebido em 1959, coroa de louros e prêmios um poeta completo.
Os Deus de Hoje
Segundo soneto
É preciso que a música aparenteno vaso harmonizado pelo oleiroseja perfeitamente consistentecom o gesto interior, seu companheiroe fazedor. O vaso encerra o cheiroe os ritmos da terra e da sementeporque antes de ser forma foi primeirohumildade de barro paciente.Deus, que concebe o cântaro e o separada argila lentamente, foi fazendodo meu aprendizado o Seu compêndiode opacidades cada vez mais claras,e com silêncios sempre mais esplêndidosfoi limando, aguçando o que escutara.
É possível que meu traço mais inamovível seja mesmo certa ingenuidade quase infantil frente à relação arte-vida, o que certa vez levou Ungaretti a me apresentar a Carlo Levy como sendo "o único gênio retardado que eu conheço" (...)
Cedê: O escritor por ele mesmo. Rio: Instituto Moreira Sales, 2001.
O reconhecimento da obra de Bruno Tolentino vem se fazendo, desde 1995, com o seu primeiro Jabuti, dois anos depois de sua volta ao Brasil. A seguir, os prêmios Cruz e Souza 1996 e Abgar Renault 1997. Mas, neste ano de 2003, sua obra reafirma o insofismável valor de seu trabalho e rompe barreiras obtendo o Prêmio José Ermírio de Moraes (75 mil), pela primeira vez concedido a um poeta, e, para conferir, pela segunda vez, o Jabuti. Mas, muito além dos prêmios e da verve satírica do “polemista dialogal”, como o nomeava Antonio Houaiss, agora, é mesmo o seu “rebento predileto” O Mundo como Idéia que mais vem despertando a crítica literária do país, ainda absorta diante da densidade dos dez ensaios e 366 poemas, alguns escritos em inglês, francês e italiano, que Tolentino justifica lembrando que só voltou a escrever em português em 1979. São 7000 versos, 40 mil palavras, contabiliza. A grandeza da obra vem a ratificar as palavras dele próprio, quando afirma que polemiza para “levantar questões e não para ter razão”, desafiando quem discorde de suas palavras a provarem que está errado. E mais, quando diz que a “estridência, mesmo a serviço da presumida justeza de uma causa, é ainda um sinal da sempre ávida vulgaridade da alma”, concluindo: “minha poesia certamente não tem nada a ver com tudo isso”. Seguramente não tem, e constatará quem ler O Mundo como Idéia, talvez a distância mais larga do presumivelmente único grande poeta satírico da atualidade literária brasileira. Que o comprove quem já leu Os Sapos de Ontem. No entanto, nesta entrevista, Tolentino ratifica o seu “vício da ironia”, toca de leve na polêmica imagem de poeta fora-da-lei, à Villon, ou ao modo dos “Poètes Maudits”, expressão em voga no último quartel do séc. XIX e usada por Verlaine para designar Corbière, Rimbaud e Mallarmé. Preferimos, no entanto, revelar neste lead traços marcantes de um Bruno Tolentino com o qual poucos tiveram oportunidade de conviver. O poeta capaz de bater na nossa porta às oito da noite e atravessar a madrugada lendo livros e livros éditos e inéditos de um poeta que até então não lhe fora apresentado pessoalmente. Em voz alta, com fidelidade rara ao ritmo do poema, Bruno Tolentino proporcionou-se momentos inesquecíveis em que o gentleman e o vate transformaram-se em um amigo fiel à poesia do pernambucano Alberto da Cunha Melo. Das páginas amarelas da revista Veja, em 1996 (n. 12, p. 8), até a mais recente entrevista concedida a Schneider Carpeggiani, em 2003, publicada na revista pernambucana Eixo, em 2004 (n. 2, p. 9), a coerência: “Tolentino ressalta que Alberto é um dos maiores poetas vivos no Brasil”. Sempre nos ocorreu que só os definitivamente grandes podem admirar verdadeiramente a obra de outros de mesmo quilate. Em relação a Tolentino, foi fácil constatar com a leitura que nos veio posteriormente da sua obra. Mas o que tem de surpreendente suas Letras, tem também a forma como escreveu muitas de suas obras. As Horas de Katharina, por exemplo, foi escrita boa parte em sonetos, na prisão de Dartmoor (1987 a 1989), onde as luzes só permaneciam acesas de 9 às 16h, e aquela forma fixa facilitava a memorização dos poemas criados, para, no dia seguinte, serem transcritos nos intervalos da Oficina Literária que lecionava para outros presos.
Mas para conhecer e reconhecer o Poeta, é preciso também ter acesso aos 87 anos de lucidez de Helena Tolentino de Andrade, a doce-forte Tia Helena. Foi ela que permitiu revelar-se para nós momentos belos, felizes, outros tristes e dramáticos, do seu mais querido sobrinho, nunca divulgados pela imprensa. Para os que ficam estupefatos e incrédulos ao tomarem conhecimento das doses da estranha química da vida que forjou o Homem-Poeta criador de O Mundo como Idéia, é preciso ouvi-la dizer do pequenino que, às portas da morte, aos dois anos, com um tumor no pulmão, em surto de tosse, expulso-o para espanto dos médicos. O pequenino que produziu seu auto-antídoto contra a morte reproduz agora a soma de vida de “uma diagnose e cura” do “mundo como idéia”: “Houve sempre em mim esse problema entre aceitar o real, verificar a realidade tal como ela é, o mundo como tal e essa atração pelo mundo como idéia. Este é um livro auto-antídoto. É a história de uma diagnose e cura”.
É preciso, também, entender sua surpreendente humildade diante do “Divino Assassino”, poema editado na nossa Plataforma, e suas diabrites que confeitam de chocolate amargo, para alguns, a beleza de uma poesia fundada no “mundo como tal”, sob o crivo de uma raríssima sensibilidade poética.
Em O Mundo como Idéia, possivelmente a mais perfeita sinopse da poesia ensaio no Brasil, Tolentino consegue mexer fundo com “o mundo como tal”, quando este tenta debruçar-se no seu “mundo como idéia”, porque já anunciou diversas vezes que, nele, não se quis didático e, para lê-lo e entendê-lo é necessário usar muito mais que “três neurônios”, mesmo aqueles privilegiados culturalmente, raros, portanto, no nosso país.
Nossos registros param aqui, para dar voz ao poeta que dispensa esta e outras apresentações, tal sua capacidade de mover e remover a inércia literária no Brasil.
Cláudia Cordeiro Reis
(Esta entrevista concedida por Bruno Tolentino a Cláudia Cordeiro Reis, foi publicada em parte na revista Continente Multicultural, em setembro de 2003, n. 33, p.34 a37. Aqui, ela está transcrita sem cortes. Atualizamos apenas a apresentação)
O Lançamento de O Mundo como Idéia, concebido em 1959, coroa de louros e prêmios um poeta completo.
Os Deus de Hoje
Segundo soneto
É preciso que a música aparenteno vaso harmonizado pelo oleiroseja perfeitamente consistentecom o gesto interior, seu companheiroe fazedor. O vaso encerra o cheiroe os ritmos da terra e da sementeporque antes de ser forma foi primeirohumildade de barro paciente.Deus, que concebe o cântaro e o separada argila lentamente, foi fazendodo meu aprendizado o Seu compêndiode opacidades cada vez mais claras,e com silêncios sempre mais esplêndidosfoi limando, aguçando o que escutara.
É possível que meu traço mais inamovível seja mesmo certa ingenuidade quase infantil frente à relação arte-vida, o que certa vez levou Ungaretti a me apresentar a Carlo Levy como sendo "o único gênio retardado que eu conheço" (...)
Cedê: O escritor por ele mesmo. Rio: Instituto Moreira Sales, 2001.
O reconhecimento da obra de Bruno Tolentino vem se fazendo, desde 1995, com o seu primeiro Jabuti, dois anos depois de sua volta ao Brasil. A seguir, os prêmios Cruz e Souza 1996 e Abgar Renault 1997. Mas, neste ano de 2003, sua obra reafirma o insofismável valor de seu trabalho e rompe barreiras obtendo o Prêmio José Ermírio de Moraes (75 mil), pela primeira vez concedido a um poeta, e, para conferir, pela segunda vez, o Jabuti. Mas, muito além dos prêmios e da verve satírica do “polemista dialogal”, como o nomeava Antonio Houaiss, agora, é mesmo o seu “rebento predileto” O Mundo como Idéia que mais vem despertando a crítica literária do país, ainda absorta diante da densidade dos dez ensaios e 366 poemas, alguns escritos em inglês, francês e italiano, que Tolentino justifica lembrando que só voltou a escrever em português em 1979. São 7000 versos, 40 mil palavras, contabiliza. A grandeza da obra vem a ratificar as palavras dele próprio, quando afirma que polemiza para “levantar questões e não para ter razão”, desafiando quem discorde de suas palavras a provarem que está errado. E mais, quando diz que a “estridência, mesmo a serviço da presumida justeza de uma causa, é ainda um sinal da sempre ávida vulgaridade da alma”, concluindo: “minha poesia certamente não tem nada a ver com tudo isso”. Seguramente não tem, e constatará quem ler O Mundo como Idéia, talvez a distância mais larga do presumivelmente único grande poeta satírico da atualidade literária brasileira. Que o comprove quem já leu Os Sapos de Ontem. No entanto, nesta entrevista, Tolentino ratifica o seu “vício da ironia”, toca de leve na polêmica imagem de poeta fora-da-lei, à Villon, ou ao modo dos “Poètes Maudits”, expressão em voga no último quartel do séc. XIX e usada por Verlaine para designar Corbière, Rimbaud e Mallarmé. Preferimos, no entanto, revelar neste lead traços marcantes de um Bruno Tolentino com o qual poucos tiveram oportunidade de conviver. O poeta capaz de bater na nossa porta às oito da noite e atravessar a madrugada lendo livros e livros éditos e inéditos de um poeta que até então não lhe fora apresentado pessoalmente. Em voz alta, com fidelidade rara ao ritmo do poema, Bruno Tolentino proporcionou-se momentos inesquecíveis em que o gentleman e o vate transformaram-se em um amigo fiel à poesia do pernambucano Alberto da Cunha Melo. Das páginas amarelas da revista Veja, em 1996 (n. 12, p. 8), até a mais recente entrevista concedida a Schneider Carpeggiani, em 2003, publicada na revista pernambucana Eixo, em 2004 (n. 2, p. 9), a coerência: “Tolentino ressalta que Alberto é um dos maiores poetas vivos no Brasil”. Sempre nos ocorreu que só os definitivamente grandes podem admirar verdadeiramente a obra de outros de mesmo quilate. Em relação a Tolentino, foi fácil constatar com a leitura que nos veio posteriormente da sua obra. Mas o que tem de surpreendente suas Letras, tem também a forma como escreveu muitas de suas obras. As Horas de Katharina, por exemplo, foi escrita boa parte em sonetos, na prisão de Dartmoor (1987 a 1989), onde as luzes só permaneciam acesas de 9 às 16h, e aquela forma fixa facilitava a memorização dos poemas criados, para, no dia seguinte, serem transcritos nos intervalos da Oficina Literária que lecionava para outros presos.
Mas para conhecer e reconhecer o Poeta, é preciso também ter acesso aos 87 anos de lucidez de Helena Tolentino de Andrade, a doce-forte Tia Helena. Foi ela que permitiu revelar-se para nós momentos belos, felizes, outros tristes e dramáticos, do seu mais querido sobrinho, nunca divulgados pela imprensa. Para os que ficam estupefatos e incrédulos ao tomarem conhecimento das doses da estranha química da vida que forjou o Homem-Poeta criador de O Mundo como Idéia, é preciso ouvi-la dizer do pequenino que, às portas da morte, aos dois anos, com um tumor no pulmão, em surto de tosse, expulso-o para espanto dos médicos. O pequenino que produziu seu auto-antídoto contra a morte reproduz agora a soma de vida de “uma diagnose e cura” do “mundo como idéia”: “Houve sempre em mim esse problema entre aceitar o real, verificar a realidade tal como ela é, o mundo como tal e essa atração pelo mundo como idéia. Este é um livro auto-antídoto. É a história de uma diagnose e cura”.
É preciso, também, entender sua surpreendente humildade diante do “Divino Assassino”, poema editado na nossa Plataforma, e suas diabrites que confeitam de chocolate amargo, para alguns, a beleza de uma poesia fundada no “mundo como tal”, sob o crivo de uma raríssima sensibilidade poética.
Em O Mundo como Idéia, possivelmente a mais perfeita sinopse da poesia ensaio no Brasil, Tolentino consegue mexer fundo com “o mundo como tal”, quando este tenta debruçar-se no seu “mundo como idéia”, porque já anunciou diversas vezes que, nele, não se quis didático e, para lê-lo e entendê-lo é necessário usar muito mais que “três neurônios”, mesmo aqueles privilegiados culturalmente, raros, portanto, no nosso país.
Nossos registros param aqui, para dar voz ao poeta que dispensa esta e outras apresentações, tal sua capacidade de mover e remover a inércia literária no Brasil.
Cláudia Cordeiro Reis
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