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domingo, 6 de junho de 2010

Maysa: um oceano de talento e contradições - por Chico Lopes




O poeta Manuel Bandeira, em frase famosa, disse que os olhos da cantora Maysa eram "dois oceanos não-pacíficos".

São esses olhos que chamam a atenção da gente, naquele rosto mais para agressivo, quase hostil, não fosse tão bonito, que ilustra a capa da biografia "Só numa multidão de amores", escrita pelo jornalista Lira Neto.

O livro é uma edição da Globo com 393 páginas e um bom número de fotos, que li de uma tacada, interessado como sempre fui pela personalidade dessa cantora-compositora brasileira que, como todo mundo, ouvi muito nos idos anos 60.

O que surpreende, nessa biografia, é a vida turbulenta dessa mulher que, romanticamente, cantava aqueles números antológicos de fossa - aliás, com uma voz tão própria que não parece ter tido nunca imitadoras à altura. Ela foi a cantora mais famosa do país, no final dos anos 50, marcada pelo escândalo do rompimento com um marido que levava o sobrenome Matarazzo, mas já era filha de uma família importante, os Monjardim, de Vitória, ES, e não fizera o casamento ideal de menina pobre com homem mais velho e rico de algumas ficções telenovelescas não. Em geral, os ricos se casam é com gente de sua classe ou afins, e a gente está careca de saber que o que os folhetins fazem é mentir sobre o fosso em geral intransponível entre as classes, que o amor raramente transpõe. Ricos se casam de preferência com ricos.

Fato foi que Maysa, querendo ser cantora, rompeu com os padrões e foi muito mal vista pela conservadora e careta Sagrada Família Brasileira, que só admite transgressões fora das vistas do público.

Foi corajosa ou apenas kamikaze? As duas coisas, sem dúvida. Um pouco como os ícones "rebeldes" da década de 50 - James Dean, Marilyn Monroe - ela investia às cegas sobre os preconceitos por força de uma personalidade temperamental e incomum. Gente como ela não possui exata consciência da torrente de energia contrária e renovadora que carrega, representando as secretas aspirações de uma época.

Essa mulher, que tanto cantou o amor, não parava mesmo com homem algum - depois de Matarazzo, casou-se com o compositor Ronaldo Bôscoli, desafiando até o próprio, que só ficou sabendo que era noivo dela quando ela reuniu a imprensa para uma coletiva num avião e anunciou que ele ia casar-se com ela, deixando Nara Leão, na época a namorada oficial de Bôscoli, fula da vida. A crônica das brigas de Maysa e Bôscoli foi escandalosa e cômica, já que eram de encher a cara, ambos, e de dar baixaria em qualquer lugar. Depois, ela se casou com Miguel Azenza, espanhol, e, por último, com o ator Carlos Alberto. Mas, embora achasse de cada vez o que parecia o homem ideal, monogâmica é que não era. O livro nos deixa a impressão de uma sede de vida amorosa que não se satisfazia nunca.

Deixa-nos também a impressão de que Maysa era um pouco da estirpe de transgressores do gênero Janis Joplin ou Jim Morrison, mortos no final dos anos 70. Gente que, por mais que quisesse levar uma vida regrada - que lhes era mais do que necessária, devido aos seus excessos - estava impossibilitada de levá-la, como se tivessem feito um pacto kármico com um destino trágico. Alguma coisa maior do que eles mesmos os arrastava para o fundo de seus próprios abismos, que deviam ser os abismos de uma época, carentes de sacrifícios humanos, mártires e heróis. Ainda que quisessem fazer um pacto com o lado mais sensato e moderado da existência - Maysa bem que tentou -, eram impelidos por alguma força interior a arriscar o pescoço (e o tédio) por alguma coisa mais vasta, mais aventureira, mais rica, como se pressentissem que sua vida teria que ser curta e intensa.

O mito pessoal de Maysa era o grande amor. Que ela nunca conseguiu porque, afinal, ao se conquistar alguém - e ela tinha recursos, beleza e ousadia para isso -, é inevitável que a realidade humana, rotineira, se estabeleça, e o Grande Sonho sofra consideráveis corrosões. Naturalmente, era nas suas composições que se percebia essa ânsia desesperada. Algumas de suas canções continuam ainda em pé, por apresentarem o mesmo "punch" passional e desiludido, que é, claro, eterno. Mas a nossa época, ao menos na MPB, parece eufórica demais para entender de fato alguém como Maysa. Ela se arriscou pessoalmente de um modo que hoje em dia ninguém mais se arrisca. Creio que o último grande mito, à altura dela, foi Cazuza.

Assim foi a vida dessa menina rica que deu um chute no balde das estiquetas burguesas, e um chute definitivo - uma vida agônica, dionisíaca, feita de tentativas de suicídio, de bebedeiras monumentais, que terminavam invariavelmente em internações para desintoxicação alcoólica. Maysa saía das internações jurando que se emendaria e, daí a alguns dias, recaía. Vivia recaindo. De recaída em recaída, sua carreira sofreu grandes hiatos e grandes fracassos.

Quem mora em Poços de Caldas terá como curiosidade, no livro, encontrar a sua cidade num capítulo importante, pois foi aqui que Maysa e André Matarazzo se conheceram, e Lira Neto se refere à cidade com simpatia, mencionando seus "belos jardins". O capítulo é o terceiro, "Marcada"(1954 -1956). Quem quiser que dê uma conferida.

O que vale é o que livro é bem escrito e muito absorvente. Eu, para ser sincero, gosto da Maysa cantora de obras-primas da fossa como "Meu mundo caiu" e "Ouça" e acho que ela ingressou na Bossa Nova por mero oportunismo. Era uma intérprete passional, carregada, dramática, que ficava melhor cantando as desilusões amorosas e não "O barquinho" e variações. Fez gravações maravilhosas ("Eu não existo sem você", de Vinícius, com ela, é de arrepiar), mas também gravou coisas afetadas e cafonas. Redimia-se de suas cafonices gravando, de repente, coisas que, na voz dela, viravam marcas pessoais definitivas - caso de "Ne me quittes pas", de Jacques Brel, que ela cantou melhor que ninguém (e olha que competia com gravações feitas às centenas no mundo inteiro, algumas com vozes do porte da de uma Nina Simone). Havia algo na voz de Maysa que podia ser de fato sublime. E derrubar qualquer cristão.

Mas ela ia do alto ao baixo tropegamente - foi até jurada do pseudo- moralista programa de Flávio Cavalcanti, de modo que escorregou na caretice e na chatice, ingressando em algumas frias de que não é bom que o fã se recorde. Melhor é ficar com a lembrança das grandes canções iniciais.

Maysa era um oceano de contradições. O livro nos deixa entre comovidos, penalizados e chocados. Foi uma mulher muito confusa, vítima da própria cabeça, da própria sensibilidade, dos desejos disparatados. E uma musa, a despeito de todo isso. Venerada até hoje, o que explica o sucesso dessa biografia.


Sobre o Autor
Chico Lopes: Chico Lopes é autor de dois livros de contos, "Nó de sombras" (2000) e "Dobras da noite" (2004) publicados pelo IMS/SP. Participou de antologias como "Cenas da favela" (Geração Editorial/Ediouro, 2007) e teve contos publicados em revistas como a "Cult" e "Pesquisa". Também é tradutor de sucessos como "Maligna" (Gregory Maguire) e "Morto até o anoitecer" (Charlaine Harris) e possui vários livros inéditos de contos, novelas, poesia e ensaios.


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