No Crato do final do século XIX, o Auto do Boi, também conhecido noutras partes por Bumba-Meu-Boi, foi uma função da cultura popular feita para o deleite de todos, incluindo as chamadas “boas famílias” da sociedade local.
Segundo Paulo Elpídio Menezes (1), além do boi, havia outros personagens coadjuvantes. Seu depoimento é rico em detalhes e, por isso mesmo, belo no estilo.
“Depois dos setenta anos, comecei a lembrar-me de tudo que vi e ouvi, quando menino. Agora é o boi, a burrinha, o caga-pra-ti, o babau e os dois vaqueiros (os caretas), o dono do boi e o tocador de harmônica que, muito embora o seu instrumento não desse os tons menores, mexia com a alma da gente, mais do que os acordeões atuais. É o boi que dançava nas frentes das casas de família, durante o mês de Natal que, com tanta rapidez, passava para os meninos.
“O boi era contratado por dez mil réis, para as oito horas da noite, enquanto a meninada estava acordada. Toda a vizinhança era convidada para assistir ao divertimento a que se dava tanto valor. A animação não se descreve. O boi trazia um grande acompanhamento. O grupo de que se compunha estacionava a certa distância. As calçadas se enchiam de cadeiras. O da harmônica, na frente. Os vaqueiros, encaretados, avançavam e, com voz gutural, rouca e escatarroada, perguntavam por meu amo. Referiam-se ao dono da casa, a quem eles queriam vender um boi.
“Realizado o entendimento, voltavam os vaqueiros trazendo a burrinha. Com ela entravam pela abertura do círculo que fazia o povo. O ‘ cabra’ executava, com perícia, uma espécie de rancheira, tocada pela harmônica, montada num cavalo de pau, coberto com u’a manta e com rédeas retesadas. Ligeiramente olhando, dava a impressão de um centauro. Sacudia aos assistentes um lenço branco, que lhe era devolvido com um ou dois dobrões (2)
“Retirada a burrinha, diziam pilhérias engraçadas e diligenciavam abrir mais a roda dos assistentes, ameaçando a molequeira, com seus jucás de relho nas pontas.
“Traziam depois o caga-pra-ti: um homem, com uma roda na cabeça, envolvida em um pano branco que descia até a cintura, onde se prendia a uma saia rendada e aberta por um balão amplo.
“Girava ao som de um pinicado da harmônica, dando pulinhos em meio do baião, dançando com agilidade e perícia. Ainda apresentavam a Ema, não mencionada em começo. Dava uma entrada solene, com passos cadenciados, ao som de uma música apropriada a seu andar pachola. Ao recolher o elegante pernalta, já se ouvia o aboiar dos vaqueiros. Momentos de grande ansiedade... O boi entraria em cena. Arcos de cipó grosso ornavam o esqueleto do animal. A cabeça e o rabo, entanto, pertenciam, realmente, à ossada de algum bovino, comido pelos urubus. Um lençol, comprido e largo, encobria o ‘cabra’ que, dentro, curvado, executava todos os ricochetes exigidos ao rei do brinquedo.
“No começo, ao soar de uma valsa branda e plangente, o boi rendia homenagem ao dono da casa e à sua família, baixando a cabeça, em mesuras respeitosas. Depois, a todos que o rodeavam. No entanto, aos poucos ia embravecendo, chegando a dar nos caretas, espalhando a multidão, ameaçada de levar chifrada.
“Tal atitude induzia os vaqueiros a abatê-lo com forte pancada no cachaço. Após a violência, os matadores sentiam-se triste, arrependidos do ato praticado. Para ressuscitá-lo o único clister... Chega, então, a hora da meninada correr. Porque eles constituíam a droga receitada para levantar o morto, dar-lhe novamente vida. A molequeira fugia em debandada. Mas nem todos escapavam. E os alcançados eram metido no cu do boi (3), fato que constituía uma desfeita. O último a aparecer era o babau, atrevido e deslavado. Uma queixada de cavalo, com uma corda para lhe dar movimento. Corria atrás do povo. Queria morder todo mundo. Batia o chocalho no rabo de palha de carnaúba. O desempenho dessa missão era confiada a um cabra forte e bem exercitado em corridas de cavalo-de-pau. Assim terminava essa função, que tanto empolgava naquela época.”
Segundo Paulo Elpídio Menezes (1), além do boi, havia outros personagens coadjuvantes. Seu depoimento é rico em detalhes e, por isso mesmo, belo no estilo.
“Depois dos setenta anos, comecei a lembrar-me de tudo que vi e ouvi, quando menino. Agora é o boi, a burrinha, o caga-pra-ti, o babau e os dois vaqueiros (os caretas), o dono do boi e o tocador de harmônica que, muito embora o seu instrumento não desse os tons menores, mexia com a alma da gente, mais do que os acordeões atuais. É o boi que dançava nas frentes das casas de família, durante o mês de Natal que, com tanta rapidez, passava para os meninos.
“O boi era contratado por dez mil réis, para as oito horas da noite, enquanto a meninada estava acordada. Toda a vizinhança era convidada para assistir ao divertimento a que se dava tanto valor. A animação não se descreve. O boi trazia um grande acompanhamento. O grupo de que se compunha estacionava a certa distância. As calçadas se enchiam de cadeiras. O da harmônica, na frente. Os vaqueiros, encaretados, avançavam e, com voz gutural, rouca e escatarroada, perguntavam por meu amo. Referiam-se ao dono da casa, a quem eles queriam vender um boi.
“Realizado o entendimento, voltavam os vaqueiros trazendo a burrinha. Com ela entravam pela abertura do círculo que fazia o povo. O ‘ cabra’ executava, com perícia, uma espécie de rancheira, tocada pela harmônica, montada num cavalo de pau, coberto com u’a manta e com rédeas retesadas. Ligeiramente olhando, dava a impressão de um centauro. Sacudia aos assistentes um lenço branco, que lhe era devolvido com um ou dois dobrões (2)
“Retirada a burrinha, diziam pilhérias engraçadas e diligenciavam abrir mais a roda dos assistentes, ameaçando a molequeira, com seus jucás de relho nas pontas.
“Traziam depois o caga-pra-ti: um homem, com uma roda na cabeça, envolvida em um pano branco que descia até a cintura, onde se prendia a uma saia rendada e aberta por um balão amplo.
“Girava ao som de um pinicado da harmônica, dando pulinhos em meio do baião, dançando com agilidade e perícia. Ainda apresentavam a Ema, não mencionada em começo. Dava uma entrada solene, com passos cadenciados, ao som de uma música apropriada a seu andar pachola. Ao recolher o elegante pernalta, já se ouvia o aboiar dos vaqueiros. Momentos de grande ansiedade... O boi entraria em cena. Arcos de cipó grosso ornavam o esqueleto do animal. A cabeça e o rabo, entanto, pertenciam, realmente, à ossada de algum bovino, comido pelos urubus. Um lençol, comprido e largo, encobria o ‘cabra’ que, dentro, curvado, executava todos os ricochetes exigidos ao rei do brinquedo.
“No começo, ao soar de uma valsa branda e plangente, o boi rendia homenagem ao dono da casa e à sua família, baixando a cabeça, em mesuras respeitosas. Depois, a todos que o rodeavam. No entanto, aos poucos ia embravecendo, chegando a dar nos caretas, espalhando a multidão, ameaçada de levar chifrada.
“Tal atitude induzia os vaqueiros a abatê-lo com forte pancada no cachaço. Após a violência, os matadores sentiam-se triste, arrependidos do ato praticado. Para ressuscitá-lo o único clister... Chega, então, a hora da meninada correr. Porque eles constituíam a droga receitada para levantar o morto, dar-lhe novamente vida. A molequeira fugia em debandada. Mas nem todos escapavam. E os alcançados eram metido no cu do boi (3), fato que constituía uma desfeita. O último a aparecer era o babau, atrevido e deslavado. Uma queixada de cavalo, com uma corda para lhe dar movimento. Corria atrás do povo. Queria morder todo mundo. Batia o chocalho no rabo de palha de carnaúba. O desempenho dessa missão era confiada a um cabra forte e bem exercitado em corridas de cavalo-de-pau. Assim terminava essa função, que tanto empolgava naquela época.”
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(1) O Crato do meu tempo, Fortaleza, 1960.
(2) Nota de Paulo Elpídio: “Moeda de cobre do valor de 40 réis”.
(3) Nota de Paulo Elpídio: “Durante muito tempo, a expressão cêdebê significava confusão, arruaça, baderna e parece originar-se da cena que se descreve acima".
(2) Nota de Paulo Elpídio: “Moeda de cobre do valor de 40 réis”.
(3) Nota de Paulo Elpídio: “Durante muito tempo, a expressão cêdebê significava confusão, arruaça, baderna e parece originar-se da cena que se descreve acima".
2 comentários:
Um cratense que se preza
gosta imenso do folclore
dos amigos, da história
no bom sentido do ser
de beber na fonte culta
respeitando o inculto
sem fazer um cêdebê...
Porisso abraço você !
Quantas referências interessantes,nesse texto.Entendendo a simbologia , a mítica , podemos nos enraizar, na cultura popular do nosso povo.
Mediadora és, mas não és mediana
Pois és altaneira na virtude
De quem sabe onde o amor emana
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