Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

ENVIE SUA FOTO E COLABORE COM O CARIRICATURAS



... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


FOTO DA SEMANA - CARIRICATURAS

Para participar, envie suas fotos para o e-mail:. e.
.....................
claude_bloc@hotmail.com

sábado, 29 de agosto de 2009

Cegueira - Por Socoro Moreira



Cega, no invisível

"Quem pensa muito não casa". Quem pensa muito vive cansado. Quem vive o dia, no caminho do sol, tem a esperteza dos mascotes.
Dias chuvosos, nos convidam a permanecer na cama. O apetite é voraz, olhamos menos para o espelho, nos desapaixonamos.
Hoje estou assim, desativada da minha energia natural. Caminho pesadamente, entre o térreo e o primeiro andar, e parece que tenho tamancos nos pés. O céu tem cheiro de lavanda; minha roupa tem cheiro de lama, e perfume do passado.
Escrever ainda é uma boa saída porque oferece passagem de ida e de volta, num vai e vem sem limites.
Visito um recanto, que apenas imagino. Busco o concreto imaginável, já que estou diante da cegueira, no invisível.
Subo no elevador. É o apartamento de um pintor. Respiro terebintina e tintas frescas. Imagino afrescos, e telas espalhadas pelos cantos. O dono está ausente. Viajou com um baú de desenganos, esculpindo pedras no caminho, rasgando a matéria, como se ela fosse molambo, e deixando nela, o produto do seu pranto.
Faço a vistoria, tateando a intuição : um sofá confortável, mas cheio de marcas; sala íntima com cheiro de "vetiver”; um relógio de pulso atrasado; canetas e papéis, numa escrivaninha de cedro; escritos em negrito, uns esquecidos, e outros amassados.
Falei com seu short, largado na cadeira do quarto. Ele olhou para mim meio intimidado, (desconfiou que eu não fosse uma ladra comum, pois de nada dali me apossara, a não ser com o olhar, e o resto dos sentidos) e disse-me:" ele me deixa assim, quando se cansa de mim".
Meu dono viajou. Ele sempre volta com um sorriso enfadado, e um brilho novo no olhar.
Sai do cenário. Não olhei em volta, nem fui até a janela, descobrir em qual cidade estive. Desprezei a personalidade física de um lugar, provavelmente conhecido.

Águas passadas movem os meus moinhos

Eu tinha um amigo que adorava mulheres das pernas tortas, e dizia isso com toda razão:
- Imagine o enrosco dessas pernas no meu corpo. Encaixe perfeito!
- E as minhas panturrilhas humildemente, se encolhiam.
Estávamos no Amazonas. Os meninos tomavam cerveja em latinhas, salpicadas de sal e limão. Claro que eu ia de "Baré", e o tira gosto era Tucunaré. Tempo infernal e celestial. Chuvas diárias nas tardes, banhos nas calçadas, no meio do mundo - um mambembe coletivo, atiçado e resfriado. Terra aonde a lepra se espalhava.
- Cuidado menino, com beijo de língua; com mordiscadas na orelha... (Cuidado para não engolir coisas alheias).
E o tempo quebrava o relógio. A estrada era selva, e o rio navegável. Exuberância, nos passeios de lancha (50 HP). De uma margem para outra, nem se tivesse olhar de lince, ou pescoço de girafa, a gente vislumbrava a margem do outro lado... Só se via água e céu, um mar nublado, sem ondas, sem turmalina, mas tinha a beleza das garças.
Nas noites, imperava o carimbó ou um violão mineiro.
Num grupo de dez, eu era apenas só!
Cansados das caças, fretamos um avião para gastar dinheiro, no "Selton" de Porto Velho. Os meninos esticaram o vôo até Letícia, na Colômbia, atrás de Old Parr e "Saco Roxo", e eu fiquei num salão de beleza, pintando os cabelos de vermelho.
Naquela noite, nos banqueteamos depois de três meses, com filés ao molho madeira.
Digestiva foi a Discoteca. Sons de Tina Turner - Dancing Days. Uns remelexos soltos, e ao mesmo tempo presos, nas meias de lamê.
Benditas diárias, que nos davam chuva, rio, peixe, castanhas e algumas mordomias.
Ontem assisti ao filme "Ensaio sobre a Cegueira”, baseado no livro de Saramago, e :

Evoquei todas as águas,
nas quais já me molhei.
Bendisse a vida.
Umedeci a pele,
folha seca da cegueira.
Agora posso fechar os olhos
Viver o que deixei passar.
Posso na vida
também adiantar o olhar.
Buscar-me, buscar-te
Entregar alma em mãos...
Confiar!
Socorro Moreira

3 comentários:

Claude Bloc disse...

Socorro,

Para quem está sem energias, seu texto está energizante, um estímulo a quem, por preguiça ou por desânimo, apenas se entrega à madorra.

Para você, paradoxalmente, parece que escrever é fonte energia pura, pois cada palavra se torna bálsamo às suas próprias angústias e desencantamentos.

Você sabe reverter, revolucionar, buscar o caldo e a essência nas coisas mais simples do cotidiano.

Por isso, mais que ninguém, te entendo e admiro.

Abraços,

Claude

socorro moreira disse...

Pensar me tira do sério , pra depois me serenar." Você também é assim..."

Acabei de chegar do supermrcado.Comprei doces pra me matar !
( risos)

Stela disse...

Sauska, pelo amor de Dio, não coma os doces,não olhe, sequer, para o açucareiro, não morra hoje, não morra ainda, não morra nunca. Outras cidades te esperam, outros tucanarés terão sabores diferentes, outros rios tu atravessarás ainda...
Travessia. Silêncio.ESCREVA.