A primeira imagem que me vem é de uma Carta de ABC, pequena, fininha, mas, para mim, fascinante com suas letras maiúsculas e minúsculas. Depois vem a imagem de um livro pequenino também, um pouco mais gordinho que a Carta de ABC. Na capa estava escrito Catecismo. E dentro, inúmeras perguntas. Quem é Deus? Onde está Deus? Quais são os 10 Mandamentos? E os 7 pecados capitais? O da gula era o que mais me metia medo porque eu comia muito, e quanto aos outros não lembro se me preocupavam.
E o mistério da Santíssima Trindade? Claro que eu não entendia, mas respeitava e reverenciava aquele mistério e achava lindas, apesar de incompreensíveis, palavras como onipresença, onipotente. Já pensou se tivessem colocado “a ubiqüidade de Deus em vez de a onipresença de Deus”? Ah! mas eu não encucava não, só aceitava e decorava tudo.
Havia também um livro de História Sagrada, que era um resumo do Antigo Testamento - da Bíblia, e cujas histórias e ilustrações despertavam em mim curiosidade, fascínio, respeito e temor.
Depois vieram muitos outros livros que eu lia, muitas vezes, num quarto com pouca luz do sol e onde à noite eu acendia uma lâmpada de luz fraca, apesar de ser gerada na ‘Casa de Força’. Só alguns mais tarde, quando chegou aos sertões a luz gerada pela hidrelétrica de Paulo Afonso, a noite parecia dia e foi uma festa ver tanto claro na escuridão da noite.
Lembro que nesta época li muitos livros de Malba Tahan e, mais tarde, toda obra de Machado de Assis. Apaixonei-me por Manuel Bandeira e por Cecília Meireles, com quem tinha, unilateralmente, lógico, uma relação de muita proximidade. O aniversário de Cecília (7 de novembro) era dois dias antes do meu e ela morreu exatamente no dia 9 de novembro quando eu estava completando 15 anos. Era como se o mistério transcendente do signo de Escorpião nos unisse. Ainda hoje carrego esse sentimento de intimidade com a alma de Cecília Meireles.
Quando eu estava com 20 anos houve uma mudança radical na vida da minha família. Saímos do sertão cearense para o litoral pernambucano e Recife nos abraçou com seus braços de Capibaribe e Beberibe, suas pontes, universidades, livrarias, frevo, Olinda e suas majestosas igrejas e casario antigo e ladeiras e mar e praias, um outro mundo, uma outra realidade.
E os nomes das ruas do Recife? Aurora, Ninfas, Sol, União... o poema evocativo de Bandeira chegava inteiro ao meu coração e eu me sentia importantíssima por morar na terra de Manuel Bandeira, me sentia sua vizinha.
E, maravilha do destino! fui trabalhar na Biblioteca Central da Universidade Católica de Pernambuco. Pronto. Era tudo que eu queria, e apesar de ter sido um período de muitas dificuldades financeiras e emocionais e de adaptação para toda a minha família, eu fui muito feliz naquele trabalho. Os livros estavam ali e eu os tocava, folheava, livros raros, livros raríssimos, coleções e mais coleções, livros técnicos, livros didáticos, romances e poesias, teatro, literatura brasileira e literatura estrangeira. O que eu gostava de ler tinha naquela Biblioteca. E eu lia, lia, e lia e o grau dos meus óculos aumentava... e estudava e trabalhava, e lia, estudava e trabalhava. Trabalhava e estudava lá na Católica, o dia todo e todo dia. O tempo passava e eu entre os livros. Devorando-os.
Eles eram alimento que engolia, algumas vezes sem saborear, outras vezes eram bem mastigadinhos, mas o fato é que naquele período os livros foram não só alimento, mas, sobretudo, companheiros que amenizavam a minha solidão e insegurança e tornavam meu tempo valioso.
E por falar em tempo, foi lá que me apaixonei por um gaúcho e seus personagens. Érico Veríssimo me fez voar em O Tempo e o Vento. Acho que li todos seus livros e estive no Continente, fui Ana Terra e fiz a terra dar frutos, fui Bibiana, fui Clarissa, sonhei com Vasco e com o Capitão Rodrigo, ouvi Apassionata tocada no piano de..., não lembro mais o nome do personagem, só lembro que todo dia ele tocava Beethoven e morava numa água-furtada.
Mas tudo isso foi depois da minha paixão por um certo poeta português. Ele estava num livro lá na estante de Literatura Portuguesa. Eu nem vi sua foto, mas sua alma múltipla de poeta se revelou e me tocou de imediato e eu me apaixonei perdidamente.
Eu ia lendo e relendo, declamando alto, mastigando, absorvendo, bebendo, vivendo e calando aqueles versos dentro de mim. Havia uma identificação tão grande, mas também uma inquietação, uma emoção não compreendida me apertava o peito, uma alegria enchia meu coração, pareciam tão perto de mim aqueles sentimentos expressos pelo poeta. E tinha uma coisa de um vazio existencial, de uma dor desconhecida, uma incógnita, uma angústia, um encontro desencontrado, uma solidão e um mistério na minha paixão por Fernando Pessoa. Havia uma ternura também, mas bem diferente da ternura que Bandeira e Cecília me traziam. Pessoa me sacudia e depois me imobilizava. E eu lia e relia e sofria, mas não sabia o que era tudo aquilo.
O poema Tabacaria era um dos meus preferidos. Já me sentia naquela janela em frente à Tabacaria, vivendo toda a angústia do poeta, e no final, sentindo, como ele, “a realidade plausível, a libertação de todos os pensamentos e especulações e a consciência de que a metafísica é uma consciência de estar mal disposto”.
Eu sempre soprava aliviada quando o poema chegava nessa parte e o poeta achava que se casasse com a filha da sua lavadeira talvez fosse feliz. Eu pensava: a solução é ser simples, é não especular nem complicar. Mas, aí ... quando o homem que entrou na Tabacaria saiu, ele reconhece que é “o Esteves sem metafísica”, acenando-lhe adeus, e “o universo reconstruiu-se sem ideal nem esperança”; aí não tinha jeito começava tudo de novo, apesar de o dono da Tabacaria sorrir.
Talvez eu pudesse me alongar ainda mais remexendo nessas lembranças de grandes paixões por quem em determinada época da minha vida foram a minha grande companhia e consolo.
Mas vai ficar para outro dia, eu prometo a mim mesma que farei isso.
(Este texto foi escrito em abril de 2001, quando eu estava participando de uma Oficina de Leitura, Histórias, Memórias e Vivências)
Stela Siebra
2 comentários:
Belo ! Perfeitamente belo !
Existe o tempo de plantar e o de colher. As emoções que lhes trouxeram ,retornam nos teus leitores.
Colho-te, nas palavras expressas com tanta beleza e ensinamentos.
Stela, aquela minha colega feliz, de quem me despedi sem avaliar a perda, e agora me chega !
Agradeço aos céus a graça desse reencontro. Só posso apostar nas afinidades da alma , e na divina natureza de uma amizade sincera.
Eu podeia dizer tudo isso em of, mas a culpa é do teu texto , que instiga o meu apreço !
Um abraço , minha camarada. Companheira sempre , entre um riso e um livro. Nos bancos escolares , e nas telas virtuais.
Ninguém mudou , nem cresceu... Ficamos felizes !
Caríssima Socorro,
Diga-me mais quem é Stela Siebra de Brito. Será aquela de Crato que está no Recife; ou será a do Recife que nunca mais veio no Crato ?
Postar um comentário