"ano de 1969 marca o surgimento simbólico da ciência conhecida como Análise do Discurso, com a publicação de duas obras, em terrenos franceses, que revolucionaram o cenário desta nova disciplina em ascensão: o número 13 da revista Langages intitulado “A Análise do Discurso”, difundido no âmbito das pesquisas realizadas pela Universidade de Nanterre, e a “Análise Automática do Discurso”, de Michel Pêcheux. Neste momento histórico todos os tipos de produções culturais e manifestações artísticas eram pensadas enquanto texto, na medida em que todas, sendo ela a pintura, a literatura, a escultura, a moda, por meio de seus textos verbais, imagéticos ou audiovisuais, tinham um propósito, eram engendradas segundo algumas condições de produção e produziam sentidos e significações diversas.
A disciplina em questão surge como uma teoria que tem por finalidade prover mecanismos de leitura destes textos, mais especificamente daqueles impregnados de um discurso político. A este respeito, Althusser, citado por Maingueneau, aponta para a redundância presente no termo “análise do discurso político”, já que, segundo o autor, “o discurso só é discurso se ligado a interesses políticos” (MAINGUENEAU, 1990, p.72). Neste sentido é possível afirmar que a Análise do Discurso pode ser aplicada à praticamente todos os tipos e gêneros textuais, uma vez que todos, tomados enquanto discurso e impregnados de ideologia, são, em maior ou menor intensidade, dotados de certo caráter político.
Bem como a grande maioria das ciências e filosofias surgidas na década de 60, a Análise do Discurso não logrou se dissociar dos três campos que permeavam as produções intelectuais na época, o materialismo ou marxismo, a psicanálise e o estruturalismo lingüístico. São de extrema importância os papéis desempenhados por Marx, Freud, Lacan e Z. Harris, bem como os de seus estudos e trabalhos, no contexto da Análise do Discurso. Assim sendo, no âmbito discursivo, o texto é resultado de um trabalho ideológico tal qual o sonho resulta de um labor psíquico no âmbito da psicanálise. A respeito da influência que estas três áreas exercem sobre a disciplina em questão, Maingueneau afirma que a Análise do Discurso “é a materialização de uma certa configuração do saber em que o mesmo termo ‘análise’ funciona ao mesmo tempo sobre os registros lingüístico, textual e psicanalítico” (MAINGUENEAU, 1990, p.69)
Diferentemente da filologia, que em uma visão simplista trata-se da ciência que se ocupa da língua primordialmente por um viés histórico e documentário, a Análise do Discurso se propõe a fugir de uma análise lingüística que se prenda basicamente a questões históricas e à estrutura dos textos, considerando, para tanto, outras “estruturas” postuladas por Michel Pêcheux, como os conceitos de “discurso”, “formação imaginária”, “formação discursiva”, “interdiscurso” e “heterogeneidade enunciativa”. Estes conceitos, que devem estar sempre atrelados em uma análise discursiva, de uma maneira generalizada, levam em conta a relação existente entre ideologia e linguagem, a inscrição da língua na história e o papel fundamental do sujeito na significação dos elementos que compõem a língua enquanto sistema.
O conceito de “formação imaginária” (ponto fundamental da disciplina “Análise do Discurso” que será mobilizado ao longo do presente artigo) desenvolvido por Pêcheux pressupõe outras três categorias (antecipação, relações de força e relações de sentido), através das quais este conceito é capaz de se manifestar no processo discursivo. A primeira destas categorias, a antecipação, aponta para a presença de um enunciador que idealiza uma figura mental (representação imaginária) de seu interlocutor e, por meio desta figura mental, determina as condições de produção das quais poderá se utilizar e quais serão suas estratégias discursivas. As relações de força no discurso são determinadas pelos lugares sociais ocupados pelos sujeitos enunciadores: aquele que ocupa o lugar social de maior prestígio e poder, detêm, ao menos em teoria, maior força no processo discursivo. Já as relações de sentido estabelecem interdiscursividades com outros textos, uma vez que os discursos estão em contato constante uns com os outros.
Portanto, o conceito de “formação imaginária” não se manifesta com base em sujeitos empíricos, mas sim apoiado em representações mentais do que possivelmente aquele interlocutor simbolizaria no mundo real, ou seja, quais suas funções neste mundo, qual o lugar social ocupado por este indivíduo, quais discursos ele já conhece ou desconhece. Este conceito, aliado às condições de produção do discurso, é quem determinada qual linguagem será utilizada, quais idéias estarão presentes, qual a intensidade e agressividade do discurso, já que todos estes fatores dependerão da imagem mental que o enunciador terá formado de seu interlocutor. A formação imaginária ocorre em ambos os lados: o emissor faz uma imagem do receptor que, por sua vez, também formará determinada opinião sobre o emissor.
Em todos os tipos e gêneros textuais o papel da “formação imaginária”, sem desconsiderar a importância dos outros conceitos que compõem a teoria de Pêcheux (como a interdiscursividade, formação discursiva, heterogeneidade enunciativa e ideologia) é decisivo e determinante para o sucesso do discurso, sobretudo no caso das piadas, material de análise do presente artigo. Sendo este um estudo de mecanismos de produção de humor permeada pelo viés da disciplina Análise do Discurso, mais especificamente de um ramo desta disciplina filiado a uma fundamentação teórica de Orientação Francesa, não se pode desconsiderar a imensa importância desempenhada também pelo conceito de “memória discursiva”.
Memória discursiva diz respeito aos enunciados presentes na memória e no imaginário dos indivíduos que partilham de uma mesma cultura que se atualizam no momento da enunciação. Este se relaciona com o conceito de interdiscursividade, que em linha gerais defende que todos os discursos são reproduções de outros discursos já existentes, produzidos anteriormente em outro tempo e espaço.
A respeito dos estudos que envolvem a análise de piadas, Possenti afirma que “a maioria das obras sobre o assunto versa sobre questões filosóficas, psicológicas e sociológicas, enquanto muito poucas referem-se aos aspectos lingüísticos envolvidos no humor” (1998, p.13). O presente artigo procura envolver em uma única análise não só aspectos filosóficos, psicológicos e sociológicos, exaustivamente já estudados, como assinala Possenti, mas também os lingüísticos e discursivos, considerando a influência e a finalidade de cada aspecto na produção do humor. Neste sentido, haverá uma tentativa de explicar tanto o “como” (pertencente ao campo lingüístico discursivo) quanto o “porquê” (inerente ao campo filosófico e sociológico) da produção de humor, não constituindo, dessa forma, uma análise puramente lingüística tampouco essencialmente filosófica, já que a dissociação destes campos não produziria o resultado pretendido.
A análise lingüística de piadas tem por finalidade explicar como estas funcionam (qual ou quais elementos lingüísticos torna engraçado algo que dito de outra forma não teria graça) e não o que elas significam. Ou seja, o simples fato de alguém afirmar que todas as loiras são burras não produziria humor, podendo até gerar reações negativas; ao passo que uma piada, a partir de uma combinação de elementos lingüísticos que apenas sugeriria a suposta burrice das loiras, e não a afirmaria explicitamente, poderia, em determinados casos e para determinadas pessoas, soar engraçado.
As três piadas selecionadas para análise, presentes em anexo e veiculadas no site “www.humortadela.com.br”, seguem uma única linha temática, estando presente em todas a problemática do machismo que reflete a situação atribuída à mulher em pleno século XXI e o discurso sem nenhum fundamento científico de que as loiras são burras.
O papel da memória discursiva na produção de humor, mais especificamente no caso das piadas que trazem a problemática machista das “loiras burras” é claro: o entendimento da piada depende diretamente do conhecimento prévio do ouvinte ou do leitor sobre o assunto. É necessário que ele tenha em sua memória discursiva o discurso já corrente na cultura brasileira de que toda loira é burra. Caso contrário, a piada não fará o menor sentido. A este respeito, Chiaro, citada por Possenti (1998, p.19), afirma que “se alguém não ‘sacar’ uma piada, isso se deve a uma certa quantidade de conhecimento não partilhado entre o falante e o ouvinte”. Neste caso, a piada deve referenciar algo que está presente na memória discursiva de apenas um dos interlocutores, produzindo humor exclusivamente para o que detém este certo conhecimento.
A questão da formação imaginária nas piadas que trazem esta problemática não é tão clara e necessita maiores análises. Partindo do pressuposto de que as piadas selecionadas são associadas a um discurso machista, poderíamos inferir que quem as conta e quem se diverte com elas seriam, conseqüentemente, indivíduos machistas. Neste sentido, ao contar qualquer uma destas três piadas, o enunciador provavelmente, após uma prévia análise, teria concluído que seu interlocutor, ainda que não fosse machista, também não se sentiria ofendido por este tema. Assim, é possível afirmar que a representação imaginária formada pelo enunciador a respeito de seu interlocutor, e vice-versa, seria: 1) machista ou passível em relação a temáticas machistas; 2) conhecedor do pensamento de senso-comum de que “toda loira é burra”; 3) possuidor de um senso de humor que o permitiria rir de uma situação na qual é degradada a imagem de um representante do sexo feminino (o que não o qualificaria como machista, mas sim como “bem-humorado”); 4) ocupante de uma posição social equivalente ou inferior à sua (não se conta piadas preconceituosas a pessoas das quais depende, por exemplo, seu emprego, sob o risco de perdê-lo).
Se todas essas representações mentais levantadas pelo enunciador corresponderem à situação real do interlocutor, então a piada será contada com êxito e cumprirá sua finalidade de produzir humor. Do contrário, quebrados qualquer um destes quatro requisitos apresentados anteriormente, como por exemplo o interlocutor não apenas não ser machista mas ainda pertencer a uma militância anti-machismo, o efeito será inverso. A piada também não produzirá humor caso o público alvo for formado por uma maioria de mulheres (que não achariam graça na degradação de sua própria imagem), de crianças (que provavelmente não compreenderiam o discurso), de estrangeiros (que não teriam conhecimento do discurso de que “toda loira é burra”) ou mesmo de homens brasileiros que tiveram suas vidas marcadas pela presença traumática do machismo.
A análise apresentada mobilizou não apenas aspectos pertencentes ao âmbito filosófico e sociológico, no sentido de que o pensamento da loira burra circula na esfera social e é permeado pela filosofia da superioridade masculina perante o sexo feminino, como também aspectos lingüísticos e discursivos, na medida em que foram aplicadas teorias lingüísticas discursivas ao corpus selecionado. Tal análise revelou a necessidade de que interlocutores partilhem da mesma ideologia, filosofia e conhecimentos, ou então que haja uma passividade de um interlocutor diante da ideologia e filosofia do outro, para que de fato ocorra a produção de humor.
O presente trabalho aponta para a importância desempenhada por dois conceitos inerentes à Análise do Discurso, “formação imaginária” e “memória discursiva”, para o sucesso do discurso machista presente nas piadas que retratam a temática da “loira burra”, bem como a necessidade de se analisar corretamente as pessoas que compõe o público para o qual serão contadas estas piadas, a fim de fazer com que a representação mental corresponda ao máximo à realidade ideológica dos indivíduos. Tendo em vista que a imagem que os interlocutores fazem uns dos outros é fundamental para que a piada produza humor, são vários os fatores que devem ser levados em conta pelo enunciador no contato imediato com o público, como a idade das pessoas que fazem parte deste público, suas ideologias, se este é composto por uma maioria de homens ou mulheres, a história de vida destas pessoas, enfim, é necessário conhecer os indivíduos para que a piada machista possa ser contada com êxito. "
PIADA Nº 1:
Espelho da Mentira
“Era uma vez um espelho mágico anti-mentiras. Qualquer um que dissesse uma mentira em frente ao espelho, puff... Sumia!
Certa vez uma gorda parou na frente ao espelho e disse:
- Eu estive pensando... Acho que estou mais magra!
Puff! Desapareceu.
Um pouco depois foi a vez de uma mulher bem feia:
- Eu estive pensando... Até que sou uma mulher bonita!
Puff! Escafedeu-se.
Então uma loira chegou em frente ao espelho.
- Eu estive pensando...
Puff!!!”
PIADA Nº 2:
Nota da Loira
“Um homem estava sentado lendo um jornal quando apareceu uma loira tossindo engasgada.
O homem, assustado, pergunta:
- O que aconteceu, moça?
- Cóf, cóf...É que eu acabei de engolir uma nota de cinqüenta reais...
- Mas, por quê?
- Meu marido que mandou...
- Como assim, o seu marido mandou você comer uma nota de cinqüenta reais? Ele é maluco?
- Não, é porque ele saiu pro trabalho hoje e me deixou um aviso: "Querida, vou para o trabalho. Deixei uma nota de cinqüenta para você. Use para o jantar!" ”
PIADA Nº 3:
Excursão de Top Models
“Um grupo de modelos estava viajando em um ônibus de dois andares para uma cidade do interior.
Lá haveria um grande desfile de uma grife de luxo. Todas estavam animadíssimas! As loiras, que eram maioria, ficaram no andar de cima e as morenas, ruivas, mulatas e orientais dividiram o andar de baixo.
Durante a viagem as garotas ficaram fazendo a maior bagunça no andar de baixo até que uma morena comentou:
— Meninas! Vocês notaram que o andar das loiras está muito quieto?
— É verdade! — concordou uma ruiva.
— Vamos lá ver o que está acontecendo! — sugeriu uma mulata.
Então subiram três delas e se depararam com todas as loiras, estáticas, segurando os braços das poltronas com força, com cara de assustadas.
— O que está acontecendo por aqui? — perguntou a morena, inconformada. — Nós estamos fazendo a maior festança lá embaixo!
Uma das loiras, sem olhar pro lado, disse:
— É, mas vocês têm motorista, né?”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MAINGUENEAU, D. Análise do Discurso: a questão dos fundamentos. IN: Cadernos de Estudos Lingüísticos 19. IEL/UNICAMP, 1990.
PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. IN: Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Editora da Unicamp, 1993.
POSSENTI, S. Os humores da língua: análise lingüística de piadas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998
A disciplina em questão surge como uma teoria que tem por finalidade prover mecanismos de leitura destes textos, mais especificamente daqueles impregnados de um discurso político. A este respeito, Althusser, citado por Maingueneau, aponta para a redundância presente no termo “análise do discurso político”, já que, segundo o autor, “o discurso só é discurso se ligado a interesses políticos” (MAINGUENEAU, 1990, p.72). Neste sentido é possível afirmar que a Análise do Discurso pode ser aplicada à praticamente todos os tipos e gêneros textuais, uma vez que todos, tomados enquanto discurso e impregnados de ideologia, são, em maior ou menor intensidade, dotados de certo caráter político.
Bem como a grande maioria das ciências e filosofias surgidas na década de 60, a Análise do Discurso não logrou se dissociar dos três campos que permeavam as produções intelectuais na época, o materialismo ou marxismo, a psicanálise e o estruturalismo lingüístico. São de extrema importância os papéis desempenhados por Marx, Freud, Lacan e Z. Harris, bem como os de seus estudos e trabalhos, no contexto da Análise do Discurso. Assim sendo, no âmbito discursivo, o texto é resultado de um trabalho ideológico tal qual o sonho resulta de um labor psíquico no âmbito da psicanálise. A respeito da influência que estas três áreas exercem sobre a disciplina em questão, Maingueneau afirma que a Análise do Discurso “é a materialização de uma certa configuração do saber em que o mesmo termo ‘análise’ funciona ao mesmo tempo sobre os registros lingüístico, textual e psicanalítico” (MAINGUENEAU, 1990, p.69)
Diferentemente da filologia, que em uma visão simplista trata-se da ciência que se ocupa da língua primordialmente por um viés histórico e documentário, a Análise do Discurso se propõe a fugir de uma análise lingüística que se prenda basicamente a questões históricas e à estrutura dos textos, considerando, para tanto, outras “estruturas” postuladas por Michel Pêcheux, como os conceitos de “discurso”, “formação imaginária”, “formação discursiva”, “interdiscurso” e “heterogeneidade enunciativa”. Estes conceitos, que devem estar sempre atrelados em uma análise discursiva, de uma maneira generalizada, levam em conta a relação existente entre ideologia e linguagem, a inscrição da língua na história e o papel fundamental do sujeito na significação dos elementos que compõem a língua enquanto sistema.
O conceito de “formação imaginária” (ponto fundamental da disciplina “Análise do Discurso” que será mobilizado ao longo do presente artigo) desenvolvido por Pêcheux pressupõe outras três categorias (antecipação, relações de força e relações de sentido), através das quais este conceito é capaz de se manifestar no processo discursivo. A primeira destas categorias, a antecipação, aponta para a presença de um enunciador que idealiza uma figura mental (representação imaginária) de seu interlocutor e, por meio desta figura mental, determina as condições de produção das quais poderá se utilizar e quais serão suas estratégias discursivas. As relações de força no discurso são determinadas pelos lugares sociais ocupados pelos sujeitos enunciadores: aquele que ocupa o lugar social de maior prestígio e poder, detêm, ao menos em teoria, maior força no processo discursivo. Já as relações de sentido estabelecem interdiscursividades com outros textos, uma vez que os discursos estão em contato constante uns com os outros.
Portanto, o conceito de “formação imaginária” não se manifesta com base em sujeitos empíricos, mas sim apoiado em representações mentais do que possivelmente aquele interlocutor simbolizaria no mundo real, ou seja, quais suas funções neste mundo, qual o lugar social ocupado por este indivíduo, quais discursos ele já conhece ou desconhece. Este conceito, aliado às condições de produção do discurso, é quem determinada qual linguagem será utilizada, quais idéias estarão presentes, qual a intensidade e agressividade do discurso, já que todos estes fatores dependerão da imagem mental que o enunciador terá formado de seu interlocutor. A formação imaginária ocorre em ambos os lados: o emissor faz uma imagem do receptor que, por sua vez, também formará determinada opinião sobre o emissor.
Em todos os tipos e gêneros textuais o papel da “formação imaginária”, sem desconsiderar a importância dos outros conceitos que compõem a teoria de Pêcheux (como a interdiscursividade, formação discursiva, heterogeneidade enunciativa e ideologia) é decisivo e determinante para o sucesso do discurso, sobretudo no caso das piadas, material de análise do presente artigo. Sendo este um estudo de mecanismos de produção de humor permeada pelo viés da disciplina Análise do Discurso, mais especificamente de um ramo desta disciplina filiado a uma fundamentação teórica de Orientação Francesa, não se pode desconsiderar a imensa importância desempenhada também pelo conceito de “memória discursiva”.
Memória discursiva diz respeito aos enunciados presentes na memória e no imaginário dos indivíduos que partilham de uma mesma cultura que se atualizam no momento da enunciação. Este se relaciona com o conceito de interdiscursividade, que em linha gerais defende que todos os discursos são reproduções de outros discursos já existentes, produzidos anteriormente em outro tempo e espaço.
A respeito dos estudos que envolvem a análise de piadas, Possenti afirma que “a maioria das obras sobre o assunto versa sobre questões filosóficas, psicológicas e sociológicas, enquanto muito poucas referem-se aos aspectos lingüísticos envolvidos no humor” (1998, p.13). O presente artigo procura envolver em uma única análise não só aspectos filosóficos, psicológicos e sociológicos, exaustivamente já estudados, como assinala Possenti, mas também os lingüísticos e discursivos, considerando a influência e a finalidade de cada aspecto na produção do humor. Neste sentido, haverá uma tentativa de explicar tanto o “como” (pertencente ao campo lingüístico discursivo) quanto o “porquê” (inerente ao campo filosófico e sociológico) da produção de humor, não constituindo, dessa forma, uma análise puramente lingüística tampouco essencialmente filosófica, já que a dissociação destes campos não produziria o resultado pretendido.
A análise lingüística de piadas tem por finalidade explicar como estas funcionam (qual ou quais elementos lingüísticos torna engraçado algo que dito de outra forma não teria graça) e não o que elas significam. Ou seja, o simples fato de alguém afirmar que todas as loiras são burras não produziria humor, podendo até gerar reações negativas; ao passo que uma piada, a partir de uma combinação de elementos lingüísticos que apenas sugeriria a suposta burrice das loiras, e não a afirmaria explicitamente, poderia, em determinados casos e para determinadas pessoas, soar engraçado.
As três piadas selecionadas para análise, presentes em anexo e veiculadas no site “www.humortadela.com.br”, seguem uma única linha temática, estando presente em todas a problemática do machismo que reflete a situação atribuída à mulher em pleno século XXI e o discurso sem nenhum fundamento científico de que as loiras são burras.
O papel da memória discursiva na produção de humor, mais especificamente no caso das piadas que trazem a problemática machista das “loiras burras” é claro: o entendimento da piada depende diretamente do conhecimento prévio do ouvinte ou do leitor sobre o assunto. É necessário que ele tenha em sua memória discursiva o discurso já corrente na cultura brasileira de que toda loira é burra. Caso contrário, a piada não fará o menor sentido. A este respeito, Chiaro, citada por Possenti (1998, p.19), afirma que “se alguém não ‘sacar’ uma piada, isso se deve a uma certa quantidade de conhecimento não partilhado entre o falante e o ouvinte”. Neste caso, a piada deve referenciar algo que está presente na memória discursiva de apenas um dos interlocutores, produzindo humor exclusivamente para o que detém este certo conhecimento.
A questão da formação imaginária nas piadas que trazem esta problemática não é tão clara e necessita maiores análises. Partindo do pressuposto de que as piadas selecionadas são associadas a um discurso machista, poderíamos inferir que quem as conta e quem se diverte com elas seriam, conseqüentemente, indivíduos machistas. Neste sentido, ao contar qualquer uma destas três piadas, o enunciador provavelmente, após uma prévia análise, teria concluído que seu interlocutor, ainda que não fosse machista, também não se sentiria ofendido por este tema. Assim, é possível afirmar que a representação imaginária formada pelo enunciador a respeito de seu interlocutor, e vice-versa, seria: 1) machista ou passível em relação a temáticas machistas; 2) conhecedor do pensamento de senso-comum de que “toda loira é burra”; 3) possuidor de um senso de humor que o permitiria rir de uma situação na qual é degradada a imagem de um representante do sexo feminino (o que não o qualificaria como machista, mas sim como “bem-humorado”); 4) ocupante de uma posição social equivalente ou inferior à sua (não se conta piadas preconceituosas a pessoas das quais depende, por exemplo, seu emprego, sob o risco de perdê-lo).
Se todas essas representações mentais levantadas pelo enunciador corresponderem à situação real do interlocutor, então a piada será contada com êxito e cumprirá sua finalidade de produzir humor. Do contrário, quebrados qualquer um destes quatro requisitos apresentados anteriormente, como por exemplo o interlocutor não apenas não ser machista mas ainda pertencer a uma militância anti-machismo, o efeito será inverso. A piada também não produzirá humor caso o público alvo for formado por uma maioria de mulheres (que não achariam graça na degradação de sua própria imagem), de crianças (que provavelmente não compreenderiam o discurso), de estrangeiros (que não teriam conhecimento do discurso de que “toda loira é burra”) ou mesmo de homens brasileiros que tiveram suas vidas marcadas pela presença traumática do machismo.
A análise apresentada mobilizou não apenas aspectos pertencentes ao âmbito filosófico e sociológico, no sentido de que o pensamento da loira burra circula na esfera social e é permeado pela filosofia da superioridade masculina perante o sexo feminino, como também aspectos lingüísticos e discursivos, na medida em que foram aplicadas teorias lingüísticas discursivas ao corpus selecionado. Tal análise revelou a necessidade de que interlocutores partilhem da mesma ideologia, filosofia e conhecimentos, ou então que haja uma passividade de um interlocutor diante da ideologia e filosofia do outro, para que de fato ocorra a produção de humor.
O presente trabalho aponta para a importância desempenhada por dois conceitos inerentes à Análise do Discurso, “formação imaginária” e “memória discursiva”, para o sucesso do discurso machista presente nas piadas que retratam a temática da “loira burra”, bem como a necessidade de se analisar corretamente as pessoas que compõe o público para o qual serão contadas estas piadas, a fim de fazer com que a representação mental corresponda ao máximo à realidade ideológica dos indivíduos. Tendo em vista que a imagem que os interlocutores fazem uns dos outros é fundamental para que a piada produza humor, são vários os fatores que devem ser levados em conta pelo enunciador no contato imediato com o público, como a idade das pessoas que fazem parte deste público, suas ideologias, se este é composto por uma maioria de homens ou mulheres, a história de vida destas pessoas, enfim, é necessário conhecer os indivíduos para que a piada machista possa ser contada com êxito. "
PIADA Nº 1:
Espelho da Mentira
“Era uma vez um espelho mágico anti-mentiras. Qualquer um que dissesse uma mentira em frente ao espelho, puff... Sumia!
Certa vez uma gorda parou na frente ao espelho e disse:
- Eu estive pensando... Acho que estou mais magra!
Puff! Desapareceu.
Um pouco depois foi a vez de uma mulher bem feia:
- Eu estive pensando... Até que sou uma mulher bonita!
Puff! Escafedeu-se.
Então uma loira chegou em frente ao espelho.
- Eu estive pensando...
Puff!!!”
PIADA Nº 2:
Nota da Loira
“Um homem estava sentado lendo um jornal quando apareceu uma loira tossindo engasgada.
O homem, assustado, pergunta:
- O que aconteceu, moça?
- Cóf, cóf...É que eu acabei de engolir uma nota de cinqüenta reais...
- Mas, por quê?
- Meu marido que mandou...
- Como assim, o seu marido mandou você comer uma nota de cinqüenta reais? Ele é maluco?
- Não, é porque ele saiu pro trabalho hoje e me deixou um aviso: "Querida, vou para o trabalho. Deixei uma nota de cinqüenta para você. Use para o jantar!" ”
PIADA Nº 3:
Excursão de Top Models
“Um grupo de modelos estava viajando em um ônibus de dois andares para uma cidade do interior.
Lá haveria um grande desfile de uma grife de luxo. Todas estavam animadíssimas! As loiras, que eram maioria, ficaram no andar de cima e as morenas, ruivas, mulatas e orientais dividiram o andar de baixo.
Durante a viagem as garotas ficaram fazendo a maior bagunça no andar de baixo até que uma morena comentou:
— Meninas! Vocês notaram que o andar das loiras está muito quieto?
— É verdade! — concordou uma ruiva.
— Vamos lá ver o que está acontecendo! — sugeriu uma mulata.
Então subiram três delas e se depararam com todas as loiras, estáticas, segurando os braços das poltronas com força, com cara de assustadas.
— O que está acontecendo por aqui? — perguntou a morena, inconformada. — Nós estamos fazendo a maior festança lá embaixo!
Uma das loiras, sem olhar pro lado, disse:
— É, mas vocês têm motorista, né?”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MAINGUENEAU, D. Análise do Discurso: a questão dos fundamentos. IN: Cadernos de Estudos Lingüísticos 19. IEL/UNICAMP, 1990.
PÊCHEUX, M. Análise Automática do Discurso. IN: Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Editora da Unicamp, 1993.
POSSENTI, S. Os humores da língua: análise lingüística de piadas. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998
Nenhum comentário:
Postar um comentário