Mesmo que não queiramos, às vezes nos deparamos com certas cenas do cotidiano que, pelas suas formas atípicas, terminam prendendo nossa atenção.
Senão vejamos!
Um dia, em meio à circulação das pessoas pelas ruas da cidade, notei que a maioria delas parecia estar insegura. Naquele quadro de aglutinação e contato mútuo, que parecia ser de confronto, havia um paradoxo: embora bem próximas elas – as pessoas - pareciam repelir-se numa atitude de pura defensividade. Era verdade, também, que mesmo estando no epicentro da multidão, muita gente parecia envolvida na mais intensa das solidões. Presas dentro de si elas pareciam estar, figurando naquela grande oceano de transeuntes, como verdadeiras ilhas existenciais.
Vi, ainda, nessa singular circunstância, que os seres humanos mal se cumprimentavam... Quase não riam, esqueciam de pedir desculpas, ou licença uns aos outros, por seus atos às vezes inoportunos. Enfim, viviam correndo, fugindo e se atropelando em nome do temor, do individualismo e da ganância natural típica da sua própria espécie.
Perceber esse processo não foi lá tão difícil assim. Afinal a violência, vista em todas suas formas, é hoje a instituição de maior crescimento no seio da humanidade.
No entanto, um fato especial veio explicitar melhor um outro lado dessa dura realidade. “Privilegiou-me”, por assim dizer, com um registro desfechado e protagonizado por um homem de idade avançada... Um velho, na concepção de alguns.
Naquela tarde, este cidadão, sempre em busca da felicidade, cumpria a sua rotina diária que consistia em passear pelas ruas centrais da cidade. Mesmo senil, ele mais lembrava um remador lutando contra aquela grande onda humana vinda de e ao encontro de sua rota.
Nesse seu avanço em relação ao meu ponto de observação, muitos detalhes de sua imagem foram, aos poucos, se tornando mais claros para mim.
Sensibilizei-me, por exemplo, com sua elegância de extremo bom gosto, pois embora não sendo “O último dos Rodolfos Valentins”, com certeza era o último dos garbosos de sua época de jovem, esta situada no tempo nas décadas de 40 e 50.
Mais aproximação entre nós...
Agora sim, ele estava bem em frente a mim. Dava para sentir o seu cheiro.
Investi na minha curiosidade. Vi, naquele semblante lânguido, sua real aparência... Ela era configurada por um olhar relutante, mas triste e assustado.
Solitário, aquele homem falava apenas com seus pensamentos, pois, embora culto e extrovertido, temia comunicar-se com a nova geração. Não que estivesse fechado para as novas idéias ou mesmo relutasse em aceitar o novo, mas porque estava sendo difícil entendê-la na sua linguagem quase interativa. Esses e outros fatores da época decretavam, cada vez mais, sua morte social.
Não resisti!
Resolvi seguir os seus passos... O fiz à meia distância, pois temi ser inoportuno e com isso abortar sua privacidade.
Em sua trilha, pois já não existiam mais trilhos que o levassem com segurança a lugar nenhum, a lei do mais forte fazia o mando de campo. A sensação era de atropelo, uma espécie de salve-se quem puder! Mesmo assim ele persistia, bravamente no seu caminho.
Avançamos, cidade adentro...
Em seu percurso ele quase que não conseguia identificar um rosto conhecido, ou mesmo um ponto de referência que lhe trouxesse uma lembrança mais próxima. Perdidos no tempo estavam a família, os velhos amigos (a grande maioria havia morrido ou estava em estado de invalidez dentro de seus lares), a tradicional barbearia, o competente engraxate, o bazar, a retreta, o atuante jornal; os festejos típicos e, acima de tudo, as incomparáveis calmarias de outrora. Assim, nos rastros de suas referências, ele terminou chegando, melancolicamente, a um ponto qualquer da cidade.
Naqueles quatro cantos de um cruzamento, bem no centro da cidade, talvez corso dos seus velhos carnavais, o vi parado por alguns minutos, talvez contemplando, a esmo, vários locais de um passado perdido no tempo.
Sem querer criticar os “design e layout” do presente, ele apenas lamentava o desaparecimento da história contida nos velhos casarões.
A tarde foi chegando ao seu fim e com ela o cansaço de alguém que via na vida um grande presente de Deus. Se ali estava, mesmo com todas suas limitações, era porque queria aproveitar tudo que ela podia lhe oferecer. Para ele, parar de lutar e amar significava envelhecer e isso não fazia parte de seus planos.
Finalmente chegou a hora de voltar!
De todas as decepções enfrentadas em mais um dia de sua vida, nas ruas e em meio às pessoas, a que mais lhe fez sofrer foi a da sua exclusão social.
Confirmei isso observando que, em todo seu trajeto, ninguém ousou ou teve a delicadeza de lhe dirigir uma só palavra, mesmo que fosse um simples e necessário bom dia.
Rejeitado pelos seus semelhantes e refém de um salário previdenciário, para aquele patrimônio humano, viver estava sendo uma tarefa difícil, pois a senilidade parecia enojar e agredir o novo e ativo.
A noite caía!
Nesse momento ele deu início ao fim de mais uma Volta Olímpica pelas ruas da cidade. Na reta final, porém, sua tristeza aumentou.
Ali, em seus aposentos, local de glorificação de seus feitos, a torcida organizada, o público em geral, os amigos e os familiares não estavam reunidos para recebê-lo com vivas e palmas.
Mesmo assim, cansado e desiludido, aquele herói resolveu subir ao seu pódium... Ele era um úmido dormitório situado em um decadente pensionato do centro da cidade.
Consolou-se, porém, com sua integridade cidadã, mantida ao longo de sua corrida existencial. Ela estava simbolizada por uma medalha de ouro a brilhar na escura solidão de seu peito.
Embora resignado e destemido, ele lamentava ter conquistado outros tristes recordes no final de sua vida:
O de viver com muita tristeza os seus últimos dias...
O de ser esquecido pela própria família...
O de ser considerado um pária descartável pela sociedade...
O de ser amparado pelas Bolsas Sociais de seu país...
O de ser considerado, por todos, como um velho!
Melancólica “Volta Olímpica” de alguém que só desejava ser feliz e que, baseado no seu talento e sabedoria de vida, ainda tinha muitas contribuições e lições de amor para dar a todos... Em todos os dias de sua vida!
Por Roberto Jamacaru
2 comentários:
Em determinadoinstante , a gente se identifica c/o personagem.
Eu gosto de vagar , no anonimato.
Eita, menino bom de escrita !
Socorro
Obrigado pelo incentivo.
Valeu!
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