Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

O Rei do Sexo - João Ubaldo Ribeiro


Acho que já passou o período de carência e me sinto à vontade para tocar neste assunto. Antes, não ficava bem, podia parecer que eu estava querendo fazer propaganda de meu último livro. Mas agora creio que essa suspeita não tem mais como ser levantada e não firo a ética profissional, ao contar que me transformei subitamente não só em autoridade sobre qualquer assunto relacionado a sexo, incluindo todo tipo de perversão imaginável, como em fogosíssimo e insaciável amante, o que já demonstrei e continuo demonstrando com senhoras e senhoritas que nunca tive o prazer de conhecer pessoalmente, mas sei por terceiros das proezas eróticas que na companhia delas empreendi e sou obrigado a reconhecer que fico um pouco vaidoso, eis que nunca tinha reparado em como sou imbatível nesse terreno e um perigo gravíssimo para pais, namorados, noivos e maridos de qualquer idade, raça, credo ou extração social.


Claro, há certos dissabores envolvidos nisso, pois a felicidade, como sempre se soube, não pode ser completa. Há pouco mais de uma semana (tenho testemunhas, havia gente a meu lado na hora), por exemplo, uma moça de uma estação de tevê ficou muito zangada comigo. Pelo telefone, me perguntou se eu não podia dar uma entrevista sobre garotas de programa.

— Como assim, garotas de programa?

— Garotas de programa, garotas de programa, um assunto de que o senhor entende.

— Eu entendo de garotas de programa?

— Claro que entende, foi o primeiro nome que nos ocorreu, quando estávamos fazendo a pauta da entrevista.

— Mas eu não entendo nada de garotas de programa. Aliás, se eu já conversei, ou mesmo vi, uma garota de programa, foi sem saber.

— Ah, se o senhor não quer dar a entrevista, é uma coisa, mas entender o senhor entende muito. Nós lemos o livro que o senhor escreveu.

— A única coisa que eu sei sobre garotas de programa foi o que eu vi na Internet e de vez em quando leio nos classificados dos jornais.

— Está certo, tudo bem, o senhor não quer falar nisso, tudo bem, é direito seu. Então podemos abordar outro assunto. O senhor não quer falar sobre prostituição infantil? Disso o senhor não pode dizer que não entende, até porque é nordestino e lá isso é muito comum.

— Sim, eu sou nordestino e de fato dizem que lá isso é muito comum, como tudo mais de tenebroso que acontece no Brasil só acontece no Nordeste, mas acho que também nunca vi uma prostituta infantil, a não ser em reportagens mesmo.

— O quê? Ah, essa não, o senhor está com má vontade.

— Juro a você que não estou com má vontade nenhuma, eu entendo tanto de prostituição infantil quanto de refino de petróleo ou física nuclear. Pensando bem, até um pouco menos.

Silêncio contrariado do outro lado. Senti que, antes de voltar a falar, ela estava silenciosamente me chamando de hipócrita e mentiroso deslavado. Mas profissionalismo é profissionalismo e ela voltou à carga, com tanta paciência quanto conseguiu reunir.

— Bem, agora o senhor não vai poder dizer que não entende nada. Nesse caso, nós fazemos uma entrevista sobre o sexo como passatempo.

— Eu, eu… Sexo como passatempo?

— Sim, passatempo, hobby, entretenimento, disso o senhor não pode absolutamente negar que entende.

— Mas, pelo amor de Deus, o que é que você pensa que eu entendo de sexo como passatempo? Eu pratico sexo como passatempo? Na verdade, em matéria de praticar sexo, como passatempo ou qualquer outra coisa, eu até lamento informar que…

— Está bem, já vi que o senhor se nega a colaborar, a partilhar sua experiência com os outros e ajudar a informar à sociedade. Está certo, o senhor faz o que sua consciência indica, é problema do senhor.

— Eu…

— Passar bem.

Pronto, mais uma inimiga, mais um golpe na minha já combalida imagem pública. Será que eu não devia resignar-me e conceder a entrevista, contando meu projeto de me eleger deputado para defender os interesses das garotas de programa, minhas viagens a Teresina para encontrar menininhas de 13 anos e minhas idas a motéis para passar o tempo com todas as mulheres que encontro? Afinal, vox populi, vox Dei, devo sofrer de um processo mental patológico que me faz esquecer minha devassidão permanente e as bacanais que todo fim de semana promovo aqui em casa, para passar o tempo. É, deve ser isso, vou procurar superar esse problema, parar com esse moralismo ridículo. Logo que saiu o livro, recebi cartas, e-mails e telefonemas de mulheres de todo tipo (inclusive, pelas vozes, jovenzinhas e velhotinhas) a que não dei corda e me ruborizaram um pouco. Só posso ter vergonha desse comportamento deplorável. Estou pensando sério em assumir minha antes imperdoavelmente negligenciada condição de rei do sexo. Meu primeiro passo será marcar horários de atendimento (topo tudo, é claro, embora, como figura pública responsável, que deve dar bom exemplo e não ser espinafrada pelo dr. Serra, sempre de camisinha — puro espírito cívico). Só não aceito convites para posar nu, porque receio que, ai de mim, minha reputação de rei do sexo se veria irremediavelmente abalada. Nós, tarados e atletas sexuais, precisamos preservar certos mitos, como um que não conto porque tenho vergonha, mas minha foto pelado talvez desmoralizasse, não posso jogar pela janela meu futuro.


Publicado por Editor \\ tags: João Ubaldo - 1999

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