Só agora, livre dos murmúrios que me perseguiam a eito, posso sentir o quanto é difícil cruzar a barreira da ficção enquanto a reflexão teórica ameaça danificar as imagens que se projetam adiante. Nenhuma imagem fala por si mesma. O rio morto é obra da minha paciência, hipérbole de miséria e a tumba sórdida dos esquecidos. Desceu inteiro, solitário, tristonho. Como foi ingênuo e ao mesmo tempo magnífico, levando peixes para o mar de peixes, até o fim da devoração. Já não chora enquanto escorre-se como uma lágrima ressequida sobre o cascalho do meu rosto. Já não urra mais em sonhos, nem sente a aflição do último veio que se esgota no curso do próprio silêncio. Desse veio restará apenas uma taça quase vazia, a cicuta de quem aí irá beber na sequidão do vale, até a hora do cortejo que vejo deixando a aldeia, parte do ofício da providência que não providencia.
A última campina já se foi, deu-se inteira a comer. Resta o lodo, que é o fim das águas, a solidão do homem que foge do gosto salobro de uma tarde devorada pela fome. No horizonte, aberto no desabraço das próprias asas, um pássaro perdido não sabe como se esconder no ar azul. Parece um pêndulo-negro à procura de um abrigo, ou do desabrigo que o mantém indeciso entre continuar ali pairado, ou flanando baixo até cair no solo firme. Poder emudecer ante o que vai sumindo é quase uma virtude. Flutuando sobre o cascalho, sepulcro das águas paralíticas, tudo que aí jaz, parece se acomodar tão lentamente, quanto as palavras impuras contidas na muda história dessa gente. É ingenuidade pensar que não estamos a adulterá-la.
Estamos sim, com palavras e interconectividade. Mesmo que se bastem, essas imagens precisam ser tocadas pelos vastos sentidos. Assim se acomodam e se convertem em palavras sentidas. Mas o tempo vai passando, as águas também, protelando o que na última hora será dito. Desse veio restarão umas poucas palavras poéticas, palavras cheias de perturbadoras imagens, tanto e quanto um entressonho que vai se materializando devagar, devagar, até que um sonho novo venha substituir o velho. Tudo sofre os efeitos da substituição calculada, tudo, inclusive a alacridade do meu riso.
Há poucos instantes e agora novamente indagando-me sobre isto, com a maior serenidade possível, chego à legítima conclusão de que, o caminho adiante não tem atalhos, e a metáfora do sonho pode ser a foz ou o abismo. Pelo abismo passarão só as imagens. Sem palavras todos os olhos são mudos, e as novas águas não se aperceberão na travessia. Onde puseram as palavras proféticas dos Gênios Malditos? O gênio não se expressa pelo olhar. Que o diga, Borges. As imagens ocas morrem cedo porque não se comportam bem no contexto. Mas não convém perder de vista o que vai fluindo no caminho das águas, nem é oportuno reivindicar o retorno ao passado. Sabemos nós que a natureza nem sempre reabilita sistemas extintos. Aqui cabe dizer algo menos restritivo. Para quem das águas retira o sustento, os leitos são caminhos naturais, traçados pelo Empreiteiro de todas as obras. Para quem aí navega sobre toras milenares, são os leitos que potencializam as riquezas nacionais. Para quem precisa desviá-los para gerar estoques de signos monetizados, todos os rios deveriam ser comunicantes com o Jordão. Se este é um geral desejo, os leitos mortos serão meras palavras e tão restritos quanto certos conceitos universais.
O tempo que espere, e só nos resta continuar o percurso. Mas ao invés de reprimido entre as margens estreitas de um rio paralítico, desatento à amplitude infindável da própria subjetividade, e apesar do murmúrio que revela numa curta pausa, as sombras mortas do invisível, e por toda parte há quem diga que sou uma porção dessa invisibilidade espacial, e ao mesmo tempo, parte substancial do vazio temporal que me comporta, melhor é fazer um passeio a pé pelos campos contíguos ao leito do Sono, onde poderei admirar um estranho e muito belo contraste, de um lado, o ocre enegrecido do barro petrificado em robustas colinas, e do outro, o esplendor da soagem, de cuja aparência, como é natural nessa época do ano, tinge as vastas superfícies com um colorido inimitável. Mas com o passar das águas e dos homens, tudo vai ficando banal, repetitivo e um obstáculo intransponível continuará a ser tão avassalador, quanto a fúria vingativa das catástrofes gigantescas. É melhor seguirmos a marcha. Estamos mais interessados nos signos do que nos enunciados. Contudo, não me apraz repetir o trotar barulhento dos idealistas e naturalistas.
Em tudo há incoerência, tanto que, os mais exaltados até já insinuam o extermínio humano para o bem da natureza. E aqui novamente, olhando para essas nuvens ágeis, fingidoras, sinto que é hora de fazer um balanço de consciência, antes que esta reflexão se misture às palavras vãs da lei impura, que como as toras milenares, também apodrecerá nas próximas correntezas. Mas como posso ser coerente com o meu discurso, sendo ao mesmo tempo algoz e vitima da natureza, usuário das benesses do meu tempo, e impávido como o sol outonal que despenca sobre os telhados e vai se deitar e queimar a alma de quem aí estiver, ou frio e insensível como os cavaleiros andantes, que iniciaram a longa marcha pela universalidade do poder? A marcha continua, tão firme quanto a vida frágil de quem todos os dias repete os mesmos trajetos para suster-se. Parece ser esse o destino dos rios e dos homens. Mas para que pressa, se ninguém nos espera em lugar algum? O mundo é grande, o Céu é maior.
O romancista, dramaturgo e sociólogo brasileiro Ruy Câmara ao completar 40 anos em 1990 abdicou da sua promissora carreira empresarial, encafuou-se em sua biblioteca e passou a se dedicar exclusivamente ao ofício literário. Após 11 anos de intensa produção, em 2003, ele surpreendeu o cenário intelectual com Cantos de Outono, o romance da vida de Lautréamont, que foi finalista do prêmio Jabuti 2004 e receberá no dia 22/07/2004 o prêmio nacional da Academia Brasileira de Letras na categoria de Melhor Romance de Ficção. O próximo romance, O Alfarrabista, será publicado em 2005.Contatos: ruycamara@uol.com.brSítio Web: www.ruycamara.com.br/novo
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