O menino brincava com os dois irmãos menores numa casa humilde de uma cidadizinha mais simples ainda. Tempos em que a rua pertencia à infância e não aos carros. A rua era o simples playground das casas, um estádio livre para o exercício da “bicheira”, da peteca, da “bandeira” , do chicote –queimado, do esconde-esconde. A lua ainda não havia fugido dos céus, ofuscada pelo néon. Jogava, a molecada, uma espécie de bocha nordestina, com pedras. A moeda de troca eram cédulas confeccionadas com o papel de carteiras de cigarro. Quem o visse assim, de bermuda, sem camisa, tangido pelo vento, empenhado nos mistérios lúdicos do jogo das pedras, jamais imaginaria o homem que se gestava na infância prenhe do menino da rua.
Mas o tempo que engoliu a rua e triturou, pouco a pouco, a infância, não conseguiu destruir o moleque. Semana passada, muitos anos depois, ele subiu as escadas de um luxuoso hotel na paradisíaca Campos do Jordão, para receber um dos prêmios mais almejados na sua arte : o XI Prêmio Brasil de Medicina. Não parecia o médico querido e renomado que tantos cearenses aprenderam a admirar, carregava o sorriso maroto do guri redivivo, como se acabasse de ganhar algumas cédulas de papel de cigarro, após a colisão certeira no jogo das pedras.
É que não foram poucos os percalços na caminhada do menino. Crescera sem a presença marcante do pai, numa família tradicional, mas humilde de três filhos.Cedo entendeu que as notas reais eram bem mais difíceis de encontrar do que as das partidas de rua. As intempéries forjaram seu espírito e rápido aprendeu: as desigualdades do mundo, a felicidade de alguns e a desgraça de muitos não aconteciam por mero acaso, iam bem além do fortuito fatalismo. Existia uma histórica e bem arquitetada trama para que o paraíso fosse de alguns eleitos e o inferno o latifúndio de uma maioria. Em plena ditadura militar dos anos 60-70, estas disparidades ficaram bem mais perceptíveis nos seus deslumbrados olhos de estudante. Embrenhou-se na política , foi perseguido e dedurado. Terminou expulso do colégio junto com os irmãos. Para recuperar os anos em atraso, fez o Curso Científico de uma só vez no supletivo e enfrentou o vestibular de Medicina em Recife. Foi o orador da turma, assim como o fora na quarta série ginasial, quando proferiu o discurso que o levou à expulsão . Partiu para o Rio de Janeiro, onde fez a residência médica na especialidade de Neurologia e para aqui voltou, nos anos 80, onde se dedicou de corpo e alma ao seu ofício. Percebeu, rapidamente, que o Cariri carregava uma chaga: a Hanseníase atacava as classes mais desfavorecidas, com índices mundiais que só se comparavam aos da Índia. Mergulhou no meio dessa multidão de mutilados, combatendo com afinco nossa praga centenária, se tornando um dos maiores especialistas brasileiros nesta área. Este profícuo trabalho o levou a teses de Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal do Paraná. Desde a escola primária , nunca se afastou da política, foi um dos fundadores do PT em nossa cidade, sendo candidato por duas vezes a prefeito de Crato, nos anos 80. Não satisfeito com toda trajetória vitoriosa, entendeu que a permanência do seu conhecimento só se exerceria se estendido a novas gerações e fez-se professor universitário. Em fins de 2009, o orador versátil voltou ao palanque proferindo brilhante discurso como paraninfo da turma de doutorandos daquele ano.
Enquanto subia as escadas para receber o prêmio Brasil, essas lembranças certamente afloraram na mente do menino Marcos Cunha. Até porque , a seu lado, braço dado, seguia-lhe o anjo da guarda de todo este percurso: D. Sônia. O menino tinha a plena convicção que sem ela , sem a sua firmeza e determinação, os sonhos teriam se estilhaçado no calçamento da rua. D. Sônia consubstancia em si todos os ingredientes das mães espartanas: pronta para corrigir quaisquer distorções na conduta dos filhos e, por outro lado, armada até os dentes a defendê-los em quaisquer situações e circunstâncias. A sua vida se compara a outras tantas heroínas da nossa história como Olga Benário e D. Bárbara; só que seu heroísmo é bem menos visível, está enfeixado entre quatro paredes, entre lágrimas , soluços, com batalhas ganhas a cada instante, a cada minuto, contra as adversidades da vida. Ela nem precisa de prêmios, observa seus troféus a cada dia: um médico e dois odontólogos , homens dignos, retos e probos.
Marcos Cunha é o médico mais completo que conheço. Carrega em si ingredientes dificílimos de se enfeixar numa única pessoa. Estudioso, profundo conhecedor da sua arte, despojado, ético e dedicado ao paciente como um monge tibetano. Não bastasse tudo isso , profundamente politizado, sabe perfeitamente que a doença, a maior parte das vezes, tem bem pouco a ver com o estetoscópio: só se cura com atitude política. E mais que tudo, humilde e simples. Talvez ninguém tenha percebido, mas não foi o médico de cabeça branca que recebeu o troféu consagrador em Campos de Jordão, mas o menino inquieto da Padre Sucupira, que jogava pião e empinava pipa, firmando os pés na terra mas lançando, premonitoriamente, as asas para o céu...
J. Flávio Vieira
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