Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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segunda-feira, 17 de maio de 2010

COMUNHÃO NO INTERIOR - Por Edilma Rocha

Margarida tinha os olhos puxados e de cor amarelada, cílios enormes, sobrancelhas finas, nariz arrebitado, a boca carnuda, sempre escondendo um sorriso desconfiado. Os cabelos negros que só caíam até os ombros, mas lisos e brilhantes .O corpo magrelo e sem curvas definidas num andar desajeitado.
Passou a noite inteira acordada numa agonia só a espera do dia amanhecer.
_ Reco... reco... O rangir da rede acompanhava seus pensamentos na lembrança da confissão ao Padre José no dia anterior. Caiu na besteira de pedir ao padre que contasse os pecados dele primeiro que só depois contaria os dela. Recebeu um carão daqueles pela ousadia e ignorância e certamente aumentaria a sua penitência. Era menina matuta do interior e na sua cabeça por mais que tentasse não compreendia direito os mistérios entre o céu, a terra e o inferno. Tudo que sabia aprendera com o mundo e as amigas mais velhas, pois não se conversava certas coisas entre mãe e filha. Na confissão teve que revelar seu maior pecado, de que todas as noites ouvia atrás da porta pai e mãe fazer coisa feia. E ainda as espiadas no primo Geraldo quando se banhava de cuia no quintal. Nunca esqueceria a vergonha que sentiu aos pés do seu vigário no confissionário. Ainda bem que entre eles tinha uma peneira de madeira , mas ao sair deu com a cara limpa e deslavada no meio de todos. A penitência foi grande mas rezou até o final sentindo-se aliviada.
Finalmente o sol clareou o quarto e num salto pulou da rede e foi correndo lavar o rosto e escovar os dentes. Teria que estar com a boca bem limpa e em jejum para receber Jesus. O vestido branco já estava dependurado no armador por trás da rede e o véu em cima da cómoda. O grande problema eram os sapatos herdados da irmã que os pés eram menores que os seus, teria que fazer um sacrifício na caminhada até o altar.
_ Avia menina já é tarde ! Falou a mãe apressada. Pois no interior todos iam e vinham a pé e a distancia até a Igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores era longa. Orgulhosa e se arrastando com dificuldade, exibia o vestido novo com o véu caído nos ombros pelas ruas. Nas mãos levava a vela enfeitada, o terço da avó Carminha e o livrinho com a capa em madrepérola, presente da sua madrinha Sofia. Capengava pra lá e pra cá tentando caminhar direito, mas as dores nos pés eram insuportáveis.
_ Eita bicha feia do Diabo ! Disse a irmã.
_ Só não te respondo porque hoje é pecado. Espera pra ver amanhã !
Os pés estavam moídos dentro dos sapatos apertados. Mas pelo caminho recebia os elogios das comadres da sua mãe e os olhares invejosos das faladeiras do lugar. Finalmente subiu o último degrau da escadaria da Igreja e passou a fazer parte da fila das meninas. Os meninos ficavam ao lado direito. O sol quente e a fome do jejum fazia escurecer a vista de alguns num corre corre danado.
_ Chega ! Já caiu outro aqui, acode! E as filhas de Maria carregavam mais um para a sacristia. Os zombeteiros caíam na risada e a vaia comia de esmola, mas as catequistas repreendiam a todos e tentavam controlar a anarquia.
Lá dentro, todo o altar coberto de flores que era uma beleza só. O padre e os coroinhas na melhor vestimenta para a ocasião especial. A igreja cheia com os familiares e curiosos aguardando a entrada dos meninos e meninas da Primeira Comunhão. Era um grande momento na Padroeira da pequena cidade do interior. Margarida ao se encaminhar para o altar, tremia as mãos e suava frio. Chegada a sua hora, de joelhos com a boca seca de sede e bem aberta, recebe a hóstia santa. Mas Jesus pregou no céu da sua boca. Pensou em passar a língua na tentativa de solta-lo, mais devia ser um pecado grande demais fazer isso. Depressa espumou a saliva e finalmente engoliu. Jesus desceu goela à baixo.
_ Ai meu Deus ! Suspirou aliviada. Tinha se livrado do grande pecado do engasgo.
Rezou a oração final e era hora de voltar para casa. Na porta da Igreja, sentou no batente, retirou cuidadosamente os sapatos da irmã e suspirou outra vez. Tinha dois grandes motivos para isso, se livrou da dor nos pés e de arder no fogo do inferno.

Edilma Rocha

5 comentários:

socorro moreira disse...

Parabéns, Edilma !
Você é uma grande contadora de histórias.Encanto-me !
Não nega ser pisciana !


Abraço grande !

Stela disse...

Muito bom, Edilma! Lembrei mais uma vez da minha primeira comunhão... e da história de ir tirar fotografia. Eu até já contei a história no Cariricaturas, não sei se tu viste. Foi hilário. kkk
Agora o que eu não falei foi que, quando ia pra missa cedinho pra comungar, "eu dava uma agonia" (era assim que a gente se referia ao fato de desmaiar de fraqueza, com fome). kkkkk
Dei agonia também na fila do grupo escolar, (será que era verme? kkkk) quando ficava cantando os hinos, por exemplo "Avante estudante, teu nome é vitória..." ou "Salve lindo pendão da esperança, salve símbolo augusto da paz...", ou "Já podeis da pátria, filhos, ver contente a mãe gentil..." - isso sem falr no hino nacional e no hino do Crato.
Eita tempo bom!!! Nesse caso aqui, pra mim, recordar é dar risadas. E te sou grata por provocar com teu texto tais lembraças.
Um xêro minina

Edilma disse...

Socorro,
Estou lisonjeada com os seus elogios.
Beijo !

Edilma disse...

Stela,
Não vi o seu texto, me desculpe, andei por fora um tempo.
Boas lembranças. Agonia é ótimo !
Beijo !

Unknown disse...

No início do seu escrito pensei que ia contar a história da Maria que trabalhou lá em casa. Parabéns eu até visualizei a cena.