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Naquele 15 de Agosto de 1945, Shain , como toda Nova York, saiu mais cedo do trabalho e dirigiu-se à Time Square. Comemorava-se o Dia da Vitória , com a rendição final dos japoneses. O fim das agruras da II Guerra Mundial que havia ceifado tantas vidas daquela sua geração e posto sérias interrogações sobre o futuro da humanidade depois das imagens de Auschuwitz, Hiroshima e Nagasaki . Lá, uma alegria epidêmica contagiava a todos: vários militares beijavam as moças nas ruas, prenunciando uma época de aumento nos nascimentos , em todo o mundo,
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De repente, um marinheiro tomou Edith nos braços e sapecou-lhe um beijo cinematográfico – em meio à beijação generalizada . Tão vigoroso o ósculo que a curvou, como se iniciasse um processo de levitação. Durou apenas alguns segundos e o militar continuou a comemoração em outras bocas pela 7ª. Avenida. A cena teria se repetido por incontáveis lábios naquele dia e , nas suas velocidade e fugacidade, terá permanecido na memória gustativa dos protagonistas e na lembrança visual, igualmente efêmera, de alguns circunstantes. Em tempos em que a mídia engatinhava e as reportagens externas de TV ainda eram um sonho, pouco restaria daquele momento não fosse uma casualidade mágica. As lentes da Leica de um fotógrafo polonês : Alfred Eisenstaedt. Um clique apenas e estava imortalizado aquele instante único e icônico, uma foto, que por si só, consegue captar , na sua simplicidade, toda a profundidade da história. Aquele poder da imagem de consubstanciar nas suas nuances aquilo que as palavras, por mais que se sucedam, não conseguem resumir.
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A imutabilidade do universo é apenas uma visão de superfície. Como se olhássemos o rio à distância, sem perceber seu fluxo incessante. Hoje , com a explosão midiática, quebraram-se todas as fronteiras da privacidade. O mundo transformou-se num reality show. A internet com suas webcams devassam todas as alcovas. Os paparazzi invadem todos os banheiros. Câmaras digitais e celulares saltam dos bolsos de cada habitante e registram os mais íntimos movimentos. E mais: as pessoas se expõem de vontade própria, cada um na busca de seu Time Square. Estudantes se filmam em transas e divulgam abertamente as imagens; mulheres e homens põem câmeras em casa e se ligam na net. Artistas registram a lua-de-mel , fingem roubo das fitas , liberando imagens tórridas no youtube. Depois, mostram-se revoltados e indignados. Antes as pessoas se apresentavam com duas máscaras: uma social mais simpática, educada e palatável: o Dr. Jekyll; e uma outra ,privada, onde mostrávamos, para nós mesmos e para uns poucos, nossa verdadeira natureza: o monstro. Agora só nos resta , a transparecer, quebradas os limites da privacidade, o que temos de pior : o Dr. Hyde.
Que distância separa o clique mágico de Alfred Eisenstaedt; da auto-exposição da Cicarelli, nas praias espanholas ou da Geyse na UNIBAN ? Acredito que a espontaneidade. A foto da Time Square eterniza um momento único e etéreo; sem que se tenha montado cenário e sem script pré-estabelecido. Ele é pleno de poesia, pois traz em si a essência plena do poeta, aquela capacidade de perenizar o volátil. Talvez , por isso mesmo, é que ainda hoje o beijo de Glenn e de Edith sabe a uruçu nos lábios de cada um de nós, como se a guerra tivesse acabado agora mesmo e a paz fosse uma verdade única e duradoura.
J. Flávio Vieira
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