Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 24 de junho de 2010

O Beijo

Edith Shain partiu neste último domingo, aos 91 anos. Vida longa. Três filhos, seis netos e oito bisnetos gravitavam em torno dela, numa casa em Los Angeles. A idade lhe consumira o frescor dos anos primaveris : Quase não lembrava a mocinha doce que fora enfermeira no Doctor´s Hospital em Nova York , nos anos 40, e, depois, professora de uma creche pública. Sua existência nada teve de muito extraordinário em se comparando com outras mulheres da sua geração. Nada. Trabalho, família constituída, atribulações cotidianas de uma enfermeira com seu ofício e afazeres domésticos. Apenas um fato inusitado, célere, imprevisível, a levou à celebridade. Destes acasos que fogem à perscrutação dos maiores visionários e que , tantas vezes, soprando em vento contrário, fazem com que o raio caia na nossa cabeça, ou pombo, em vôo, nos acerte a fronte com seu excremento. Mesmo assim, Edith manteve o segredo por quase quarenta anos. Temia a exposição às câmaras ou uma interpretação maliciosa por parte dos familiares e da sociedade norte-americana tão afeita ao falso moralismo e à hipocrisia.
Naquele 15 de Agosto de 1945, Shain , como toda Nova York, saiu mais cedo do trabalho e dirigiu-se à Time Square. Comemorava-se o Dia da Vitória , com a rendição final dos japoneses. O fim das agruras da II Guerra Mundial que havia ceifado tantas vidas daquela sua geração e posto sérias interrogações sobre o futuro da humanidade depois das imagens de Auschuwitz, Hiroshima e Nagasaki . Lá, uma alegria epidêmica contagiava a todos: vários militares beijavam as moças nas ruas, prenunciando uma época de aumento nos nascimentos , em todo o mundo, que se chamou, depois de Baby Boom. Como se a vida tentasse recuperar as perdas e estabelecer, claramente, sua soberania sobre a morte.
De repente, um marinheiro tomou Edith nos braços e sapecou-lhe um beijo cinematográfico – em meio à beijação generalizada . Tão vigoroso o ósculo que a curvou, como se iniciasse um processo de levitação. Durou apenas alguns segundos e o militar continuou a comemoração em outras bocas pela 7ª. Avenida. A cena teria se repetido por incontáveis lábios naquele dia e , nas suas velocidade e fugacidade, terá permanecido na memória gustativa dos protagonistas e na lembrança visual, igualmente efêmera, de alguns circunstantes. Em tempos em que a mídia engatinhava e as reportagens externas de TV ainda eram um sonho, pouco restaria daquele momento não fosse uma casualidade mágica. As lentes da Leica de um fotógrafo polonês : Alfred Eisenstaedt. Um clique apenas e estava imortalizado aquele instante único e icônico, uma foto, que por si só, consegue captar , na sua simplicidade, toda a profundidade da história. Aquele poder da imagem de consubstanciar nas suas nuances aquilo que as palavras, por mais que se sucedam, não conseguem resumir.
Por muitos e muitos anos, a foto célebre mantinha um tempero especial. Seus protagonistas eram anônimos, rostos perdidos em meio à turba. Só no final dos anos 60, Edith, com o despojamento que os anos lhe trouxeram, assumiu a participação. O marinheiro, no entanto, ainda é uma incógnita, embora peritos, posteriormente, tenham concluído, com alguma margem de segurança, se tratar de Glenn McDuffie,de Houston, hoje aos 82 anos. Um dia, entrevistada, disse Shain : "O Sol nasce, o Sol põe-se. Não muda nada. Nem foi grande coisa. Afinal meninas bonitas recebem sempre mais do que um único beijo, não é? Foi um bom beijo, longo. Fechei os olhos e não resisti.”
A imutabilidade do universo é apenas uma visão de superfície. Como se olhássemos o rio à distância, sem perceber seu fluxo incessante. Hoje , com a explosão midiática, quebraram-se todas as fronteiras da privacidade. O mundo transformou-se num reality show. A internet com suas webcams devassam todas as alcovas. Os paparazzi invadem todos os banheiros. Câmaras digitais e celulares saltam dos bolsos de cada habitante e registram os mais íntimos movimentos. E mais: as pessoas se expõem de vontade própria, cada um na busca de seu Time Square. Estudantes se filmam em transas e divulgam abertamente as imagens; mulheres e homens põem câmeras em casa e se ligam na net. Artistas registram a lua-de-mel , fingem roubo das fitas , liberando imagens tórridas no youtube. Depois, mostram-se revoltados e indignados. Antes as pessoas se apresentavam com duas máscaras: uma social mais simpática, educada e palatável: o Dr. Jekyll; e uma outra ,privada, onde mostrávamos, para nós mesmos e para uns poucos, nossa verdadeira natureza: o monstro. Agora só nos resta , a transparecer, quebradas os limites da privacidade, o que temos de pior : o Dr. Hyde.
Que distância separa o clique mágico de Alfred Eisenstaedt; da auto-exposição da Cicarelli, nas praias espanholas ou da Geyse na UNIBAN ? Acredito que a espontaneidade. A foto da Time Square eterniza um momento único e etéreo; sem que se tenha montado cenário e sem script pré-estabelecido. Ele é pleno de poesia, pois traz em si a essência plena do poeta, aquela capacidade de perenizar o volátil. Talvez , por isso mesmo, é que ainda hoje o beijo de Glenn e de Edith sabe a uruçu nos lábios de cada um de nós, como se a guerra tivesse acabado agora mesmo e a paz fosse uma verdade única e duradoura.

J. Flávio Vieira

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