Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quarta-feira, 17 de novembro de 2010

A mão, o fio, a renda...


Feliciano cambaleava na cozinha. Da boca saía uma gosma escura e amarga. Escoava-lhe o fel dos últimos anos de vida. Olhava fixo para a velha mesa que girava vertiginosamente e o levava junto num agônico carrossel. Uivos agudos intercalavam-se com graves grunhidos formando a partitura dos sinos anunciadores da morte. Repentinamente, do nada, apareceram sombras que ganharam forma e alma: personagens que povoaram os anos dourados da sua vida. Os olhos arregalados acompanhavam os movimentos fantasma da mulher que enterrara num verão longínquo. Seguiam também a carreira de um garotinho vestido de marinheiro – orgulho de pai coruja -- que não o vinha visitar desde quando trocara a boina de marujo por uma beca de advogado. Mas nada disto importava , estavam ali, juntos, alegres e carinhosos : como se a vida não os houvesse separado. Acabava-se, por fim, o paradoxo de tantos anos : Feliciano era feliz !
Mal a faxineira entrou no apartamento, o grito estridente ecoou nos corredores do prédio. O porteiro acudiu rápido e, protegido pelo colarinho da camisa, controlou o mal-estar que o dominava. Ela tomou o caderninho do telefone, jogado sobre a mesinha da sala, tentando encontrar o número do único herdeiro de Feliciano. Do outro lado da linha, uma voz mecânica e repetitiva informava ser impossível completar a ligação. O porteiro, trêmulo, chamou a polícia. Agiu rápido para não correr o risco de quebrar a rotina dos moradores.
Nem lágrimas, nem flores, nem velas, nem preces. Apenas o arrastado da pá rangia no chão duro e frio.
No bairro a notícia ganhou o mundo. De boca em boca, um só alarido: um homem encontrado somente após duas semanas do falecimento. Apenas isso. Ninguém se lembrou da ausência de um filho, de um amigo, de um vizinho, de um cobrador que fosse. Nenhuma reflexão se fez sobre a existência de homens ilhados, esquecidos, descartados, perdidos em labirintos traçados por aquilo que se convencionou chamar de modernidade. Nem se pensou que, se com uma mão a humanidade tece complicadas redes de fios metálicos, com a outra desfaz a delicada renda da solidariedade. Enfim, não desconfiavam de que, num futuro próximo, o grito estridente da faxineira iria ecoar dentro de suas próprias casas.
J. Flávio Vieira

Um comentário:

socorro moreira disse...

Gosto de encontrar este escritor, em qualquer lugar.
Ele sempre deixa em mim uma informação transformadora.


Abraços, menino!