A furta cor de um dia
O parque, da quadra Bi-Centenário do Crato, sempre foi para mim uma espécie de refúgio, de idílio e de reserva imaculada de auto-afirmação, durante os meus conturbados anos de adolescência. Era um período de revolta inerente. Eram os fins da década de setenta e inícios dos anos oitenta. Foram praticamente três anos na companhia diária de Geraldo Urano, Clélio, Romildo e Orlando, principalmente. Sempre recebíamos algumas visitas inusitadas, bem como sabíamos de algumas despedidas repentinas, como a minha, por exemplo, rumo aos jardins suspensos do bairro Pinheiros, em São Paulo.
O horário sagrado era o pingo da mei dia. Os alunos passando ao largo, os sonhos flutuando à nossa volta, como pedras coloridas suspendidas, as divagações assumindo deliberadamente a solidão dos andarilhos envoltos em lençóis psicodélicos, enquanto a filosofia vã dos desocupados desenhava em nossas mentes paisagens urbanas ocupadas por tropas de assalto e anarquistas espiritualizados nas mais altas esferas da teosofia, dos mitos e do esoterismo fácil dos mundos adjacentes ao absurdo.
Discutíamos de tudo, tanto no sentido lato como no sentido estrito. As leituras eram colocadas em dias e debatidas com uma ferocidade sarcástica que se superava a cada dia, trocando de pele como uma cascavel da caatinga, recém chegada dos desertos americanos. Geraldo tinha uma capacidade mórbida de desconcertar qualquer um com comentários lúcidos e perturbadores. Romildo era dono inconteste de argumentos ferinos contra qualquer coisa. Clélio era o anarquista que todos nós precisávamos constantemente para crucificar a sociedade em nosso passatempo preferido. Orlando era a mansidão naturalista em pessoa, o peso ideal para aliviar e elevar as nossas dores marginais.
Geralmente chegávamos ao nosso encontro diário e inadiável com as idéias fervilhando os nossos ideais. Sempre existia uma certa concordância inicial sobre qualquer coisa. Depois a dialética revestia nossas íris com um arco-íris chamuscado pela urgência existencial de cada um. A catarse era coletiva e individual, com a mesma intensidade com que um ovo é fritado na imaginação de um vagabundo, aos pés de um viaduto de uma metrópole encardida pela fuligem do asfalto e do gás carbono. A tensão era a nossa marionete. A sociedade o nosso Pantagruel. A arte e a cultura eram o outro perdido no labirinto de Borges. Nosso senso crítico distribuía igualitariamente um Dom Quixote para cada moinho movido pelas nossas controvérsias. A gente se despedia, ou não, sempre de mãos vazias, mas com a alma repleta de saudades inconfessadas já para o próximo dia.
Naquele dia sentamos em completo silêncio e nele mergulhamos nossos anseios, vitórias e derrotas, e nele permanecemos, em perturbações imperceptíveis, como uma árvore que cria cascas, quebrando espelhos e fundando universos paralelos. Foram as três horas mais prolíferas da minha vida, naquele período de descobertas indomáveis. Foi aquele silêncio barulhento que fez com que eu percebesse que naquele exato momento aqueles dias inesquecíveis haviam acabado e que não reencontraríamos mais nenhum daqueles nós mesmos de há pouco tempo atrás. Foi naquele dia que o saudosismo foi definitivamente banido do meu reduto. Senti na face o vigor do sorriso de quem reconhece o próprio sangue pulsando nas veias.
8 comentários:
Sinto uma alegria enorme de vê-lo por aqui. Gosto de você !
E o texto ? Li arrepiada.
Tenhio sobre o parque tantas lembranças vadias, tanto o que contar...
Meu tempo entre vocês foi menor, por ser de uma geração anterior , pelos intervalos de ausências.
Mas estive com todos em 1983,84 ...86,87.
Um abraço apertado de boas vindas.
Contribua com o seu poder de dizer as coisas de uma forma diferente. Traga-nos a sua poesia !
Meu camarada e meu irmão,
abraço-te a alma.
Eis o Silêncio revelador.
Um caloroso abraço.
Os delíricos anos 70. As descobertas da maconha, do LSD, da Psilocibina, da Mescalina. O psicodélico, a Ilha de Aldous Huxley, o Sidarta, pulsando em toda a cultura impregnada destes tempos. Se a revolução nas relações exteriores era plena de contradições, talvez a revolução por dentro, adotando retalhos de uma religiosidade oriento-ocidental. Primitiva e elaborada. Esotérica ou exotérica. Inventada nos papos. Um dia um grupo já se encaminhando para os últimos anos da faculdade, resolve tomar LSD e passear pela deserta (então) prainha em Aquiraz. De repente no estado alterado da mente, se tornam o que já eram: o que estavam aqueles homens fazendo ali? Não havia mais um fluido que antes houvera. E foram apodrecer nos consultórios e escritórios.
Socorro, agradeço as boas vindas, já me sinto em casa. Vou postar sim minhas poesias e minhas crônicas sobre o Crato e a minha relação de distanciamento e aproximação com esse meu torrão querido e desquerido.
Rafael, muito obrigado pelo convite. Esses pequenos detalhes demonstram cuidado com aquilo que prezamos.
Domingos, poeta arretado,
você fez parte desses encontros, não com tanta frequência, mas sempre marcante, com seu neo-romantismo rebelde, vivendo a poesia a cada instante, com sua retórica afiada e o seu sarcasmo impagável.
Lembra que nesse período já discutíamos sobre a arte poética?
abraços, irmão
Pois é José do Vale,
alguns foram e não voltaram.
As experiências são válidas, quando o prazo de validade não vence.
abraços
Marcos V. Leonel,
Pela primeira vez ouso falar-lhe de algum modo sobre seus escritos. Entre entremeios e entretantos, devo dizer (e não considere isto um elogio apenas) da beleza do seu texto e de como pude neste momento finalmente encontrar em você a alma caririense, nesse elo perdido do meu universo.
Não apenas li, mas vivi suas palavras. Bem vindo ao Cariricaturas. Esperamos novas colaborações de sua parte.
Abraço,
Claude
Valeu Claude,
obrigado pelas boas vindas. Vou continuar a postar, o espaço é muito legal e com direcionamento específico.
Sinta-se à vontade para comentar o que queira e da maneira como for em qualquer escrito meu.
Deixemos o que passou passar, é bem melhor assim.
abraços
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