Imagem capturada de www.enciclopedianordeste.com.br/
Desde tempos remotos, o Cariri cearense é um espaço onde se processam fenômenos que são causadores do reconhecimento da região, enquanto local de referência nos campos natural e cultural.
Desde tempos remotos, o Cariri cearense é um espaço onde se processam fenômenos que são causadores do reconhecimento da região, enquanto local de referência nos campos natural e cultural.
Depositário de uma das mais importantes reservas fossilíferas do mundo, que registram a evolução da vida, numa escala de tempo baseada em milhões de anos, o Cariri detém um sítio arqueológico que atesta a presença humana, desde antigas épocas. A colonização da região, a partir dos valores e interesses gerados no movimento da expansão do renascimento comercial europeu, remonta ao início do século XVII, apoiada na criação de gado e no plantio de cana-de-açúcar, em um processo de adaptação ecológica peculiar.
Sua localização geográfica é privilegiada. No meio do seco semi-árido, destaca-se a imponente chapada do Araripe, emanando de suas encostas centenas de fontes de água cristalina que irrigam o vale. Nem por isso, os brejos são exclusivos na sua paisagem. Outros ecossistemas, como carrasco, cerrado e mata atlântica, compõem o seu retrato físico.
O Cariri faz-se presente na historiografia nacional, pois fez ecoar, no primeiro quartel do século XIX, o grito de liberdade bradado em Pernambuco contra a dominação colonial-portuguesa. Em duas oportunidades, em 1817, na Revolução Pernambucana, e em 1824, na Confederação do Equador, movimento que almejava o Nordeste autônomo da opressão do unitarismo do Estado imperial, a região fez-se ouvida. Fez-se presente, também, nas lutas de consolidação da independência brasileira, em 1823, quando arregimentou um batalhão de combatentes para lutar contra a reação lusitana.
O Cariri foi o campo de batalha de Bárbara de Alencar, primeira mulher a ser presa no Brasil por ideais políticos, acusada de subverter a ordem por participar, ao lado dos filhos Martiniano e Tristão Araripe, de revoltas liberais contra o despotismo monárquico.
O Cariri é o berço e arena de vida do Padre Cícero Romão Batista, o santo popular venerado por milhares de romeiros que periodicamente afluem para a cidade de Juazeiro do Norte, a fim de reverenciar a memória do fenômeno que, passados mais de 70 anos do falecimento do levita, continua crescendo, a ponto de motivar contínuas revisões da sua importância histórica.
A Universidade Regional do Cariri - URCA, a maior instituição pública de Ensino Superior na região, já realizou três simpósios internacionais sobre o tema. Centenas de obras bibliográficas e cinematográficas tratam dos epifenômenos gerados, a partir da influência do sacerdote. Uma história que coloca em cena o povo do Nordeste do Brasil, protagonista de projetos de resistência ao forte e arraigado poder oligárquico, sustentado no clientelismo e na concentração de renda.
Em 2006, duas datas ajudaram a reavivar a memória dos movimentos populares, surgidos no bojo da ação do Padre Cícero: 70 anos da destruição da Irmandade do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto e 60 anos da morte do seu líder, o Beato José Lourenço.
José Lourenço Gomes da Silva veio da Paraíba para Juazeiro do Norte, no Ceará, no final do século XIX, em 1890, no bojo da atração exercida sobre milhares de romeiros, pela fama do Padre Cícero. Na verdade, José Lourenço veio em busca de sua família que, há muito anos, não via, desde quando saiu de casa, ainda na adolescência, para trabalhar em fazenda de gado do interior da Paraíba.
Em 1989, aconteceu, pela primeira vez, no então lugarejo, o fenômeno de transformação da hóstia em sangue, ministrada pelo Padre Cícero à beata Maria de Araújo. O fenômeno repetiu-se várias vezes e causou um misto de fervor e perseguição, causador tanto da veneração fanática ao Padre, como santo milagreiro, quanto da suspensão de suas ordens religiosas.
Independentemente da perseguição ao Padre, Juazeiro, nos anos do milagre e nos seguintes, recebeu milhares de romeiros que transformaram pela fé e pelo trabalho um acanhado arraial numa cidade emblemática e próspera.
José Lourenço, por sua liderança e caráter laborioso, destacou-se em meio à leva de romeiros e atraiu a simpatia e a proteção do Padre Cícero. Por indicação deste, arrendou uma faixa de terra no Sítio Baixa Dantas, no município de Crato e, em pouco tempo e com ajuda de seus primeiros seguidores, transformou o lugar, outrora estéril, em um pomar. Quando o sítio foi vendido, o novo proprietário requereu-o de volta, sem indenizar o Beato e seus seguidores.
Contando com a sempre zelosa intervenção do Padre Cícero, o Beato José Lourenço recomeçou do zero, recebendo uma porção de terra que pertencia ao sacerdote, em lugar inóspito e seco, conhecido como Caldeirão dos Jesuítas, também em Crato. Ali, o Beato e seus seguidores, trabalhadores rurais sem-terra, que antes viviam espoliados pelo poder das oligarquias latifundiárias, desenvolveram a mais importante experiência coletivista, de natureza religiosa e popular, do século XX. Construíram um arraial, dotado de capela, engenho de rapadura, casa de farinha, reservatórios de água e oficina de fabricação de utensílios e instrumentos. Plantaram cana-de-açúcar, mandioca, feijão, milho, legumes e frutas. Criaram gado, aves e peixes. Dividiam a produção, segundo as necessidades de cada um. Viviam ordeiramente, regidos pela fé e pelo trabalho. Além do mais, praticavam técnicas agrícolas em perfeita simbiose com os recursos e os ecossistemas do semi-árido.
Mas o tipo de vida adotado na comunidade atraiu a oposição das elites locais, que se sentiram prejudicadas, nos seus interesses, pela evasão da mão-de-obra, que havia se mudado para a comunidade do Caldeirão, a fim de participar de um projeto de construção de um paraíso terrestre, no meio da exploração a que era submetida. Pairava, ainda, a ameaça do ideal cultivado em Canudos, de resistência à ordem dominante, responsável esta, em grau maior, pela miséria dos camponeses nordestinos.
Em 1935, o país vivia o auge de um período de grande turbulência. A seca e a fome castigavam o Nordeste, enquanto proliferava a ideologia comunista de tomar o poder pela revolução. A Intentona Comunista, eclodida simultaneamente em Natal, Recife e Rio de Janeiro, mesmo sendo sufocada rapidamente, deixou em polvorosa os donos do poder. Getúlio Vargas tramava o golpe que iria instaurar a ditadura do Estado Novo. O clero temia tanto o ateísmo comunista como o messianismo herético. Havia, então, a conjugação de fatores que justificaria o plano de destruição do Caldeirão. Ademais, tinha-se juntado aos camponeses da comunidade uma personagem chamada Severino Tavares, oriundo do Rio Grande do Norte. Logo, o conciliábulo que se formara contra o Caldeirão enxergou em Severino um egresso do levante de Natal. Na verdade, Severino nunca chegou a morar no Caldeirão. Vivia pelos caminhos, indo de fazenda em fazenda, pregando a “terra prometida” e seu líder, o Beato José Lourenço.
O fim do Caldeirão foi decidido, cabendo à força policial do Estado o seu desfecho. Para tanto, foi enviado ao Caldeirão um destacamento comandado pelo tenente José Bezerra, a título de vistoria, para confirmar a informação de que a comunidade, além de ser um antro de fanáticos, abrigava perigosos comunistas. Havia a denúncia de que o Beato tinha recebido armas e munições do exterior para servir ao comunismo revolucionário. Tais denúncias, na verdade, foram boatos inventados pelo advogado dos Salesianos e reforçados pelo famigerado caçador de cangaceiros, Tenente Bezerra, que estava, de fato, interessado em apropriar-se dos bens que localizou no Caldeirão. Mesmo não se confirmando as denúncias (ficou atestada a vida ordeira da Irmandade e os supostos caixotes de armas traziam, na verdade, imagens de santos compradas na França), a destruição do Caldeirão estava decretada.
A essa altura, o Beato já tinha fugido para a Serra do Araripe, com intuito de refugiar-se no sítio União, no vizinho município de Exu, resoluto em, mais uma vez, recomeçar tudo de novo. Para trás deixou um grupo de seguidores destemidos e determinados a vingar a destruição do Caldeirão, liderado por Severino Tavares e Sebastião Marinho.
Parte dos moradores do Caldeirão, como caça acuada, se escondeu também na serra, fugindo das atrocidades que lhe foi cometida, quando expulsa da toca. As casas foram queimadas, os bens saqueados e os homens de confiança do Beato, conduzidos presos a Fortaleza.
A vingança, porém, foi comida num prato ainda quente. Em um incidente originado de uma armação de alguns seguidores do Beato, houve uma contenda, quando tombaram mortos o Tenente Bezerra, seu filho, três policiais e cinco camponeses, entre estes Severino Tavares. A resposta veio rápida e enérgica. Para apagar qualquer vestígio da resistência, foram utilizados aviões da Força Aérea que dispararam fogo sobre o acampamento dos camponeses fugitivos, massacrando cerca de 700 deles.
O Beato, sempre ordeiro e pacífico, retomou sua labuta à frente do Sítio União. Temendo novas reações do poder político instituído e das forças conservadoras, manteve-se em total discrição, evitando a formação de uma nova comunidade.
Na década seguinte, a de 1940, o sertão nordestino sofreu com a temível peste bubônica, o verdadeiro "anti-Cristo" nas estatísticas do Departamento Nacional de Epidemias Rurais. O Beato sucumbiu à doença, e com ele morreu o que restava do sonho do Caldeirão. A força dos que restaram não pereceu. Carregou o corpo do líder por 70 quilômetros, refazendo os caminhos do Beato, para enterrar o homem santo no seu lugar, o campo santo da terra santa de Juazeiro.
3 comentários:
Carlos Rafael,
É sempre bom despertar com novidades.
Sua escolha trouxe um assunto muito abrangente e do interesse da nossa tribo.
Nas histórias que lemos por aí, sempre fica faltando um pedaço. Este texto porém, além de ilustrativo é palpitante em detalhes.
Gostei de ler.
Abraço,
Claude
Grato, Claude.
Seu conterrâneo, o filósofo Jean-Paul Sartre disse que o Caldeirão foi a mais significativa experiência coletivista de cunho religioso-popular que aconteceu no mundo no século XX. JPS esteve em Fortaleza no início da década de 1960 e demonstrou interesse em conhecer o local que sediou esta esperiência sociológica. Não sei porque ele não veio (ou se veio anonimamente).
Abraços
DENÚNCIA: SÍTIO CALDEIRÃO, O ARAGUAIA DO CEARÁ – UMA HISTÓRIA QUE NINGUÉM CONHECE PORQUE JAMAIS FOI CONTADA...
"As Vítimas do Massacre do Sítio Caldeirão
têm direito inalienável à Verdade, Memória,
História e Justiça!" Otoniel Ajala Dourado
No CEARÁ, para quem não sabe, houve também um crime idêntico ao do “Araguaia”, contudo em piores proporções, foi o MASSACRE praticado por forças do Exército e da Polícia Militar do Ceará no ano de 1937, contra a comunidade de camponeses católicos do Sítio da Santa Cruz do Deserto ou Sítio Caldeirão, que tinha como líder religioso o beato JOSÉ LOURENÇO, seguidor do padre Cícero Romão Batista.
O CRIME DE LESA HUMANIDADE
A ação criminosa deu-se inicialmente através de bombardeio aéreo, e depois, no solo, os militares usando armas diversas, como fuzis, revólveres, pistolas, facas e facões, assassinaram mulheres, crianças, adolescentes, idosos, doentes e todo o ser vivo que estivesse ao alcance de suas armas, agindo como se ao mesmo tempo, fossem juízes e algozes.
A AÇÃO CIVIL PÚBLICA AJUIZADA PELA SOS DIREITOS HUMANOS
Como o crime praticado pelo Exército e pela Polícia Militar do Ceará foi de LESA HUMANIDADE / GENOCÍDIO / CRIME CONTRA A HUMANIDADE é considerado IMPRESCRITÍVEL pela legislação brasileira bem como pelos Acordos e Convenções internacionais, e por isso a SOS - DIREITOS HUMANOS, ONG com sede em Fortaleza - Ceará, ajuizou no ano de 2008 uma Ação Civil Pública na Justiça Federal contra a União Federal e o Estado do Ceará, requerendo que: a) seja informada a localização da COVA COLETIVA, b) sejam os restos mortais exumados e identificados através de DNA e enterrados com dignidade, c) os documentos do massacre sejam liberados para o público e o crime seja incluído nos livros de história, d) os descendentes das vítimas e sobreviventes sejam indenizados no valor de R$500 mil reais, e) outros pedidos
A EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DE MÉRITO DA AÇÃO
A Ação Civil Pública inicialmente foi distribuída para o MM. Juiz substituto da 1ª Vara Federal em Fortaleza/CE e depois, redistribuída para a 16ª Vara Federal na cidade de Juazeiro do Norte/CE, e lá chegando, foi extinta sem julgamento do mérito em 16.09.2009.
AS RAZÕES DO RECURSO DA SOS DIREITOS HUMANOS PERANTE O TRF5
A SOS DIREITOS HUMANOS inconformada com a decisão do magistrado da 16ª Vara de Juazeiro do Norte/CE, apelou para o Tribunal Regional da 5ª Região em Recife, com os seguintes argumentos: a) não há prescrição porque o massacre do Sítio Caldeirão, é um crime de LESA HUMANIDADE, b) os restos das vítimas do Sítio Caldeirão não desapareceram da Chapada do Araripe a exemplo da família do Czar Romanov, que foi morta no ano de 1918 e encontrada nos anos de 1991 e 2007;
A SOS DIREITOS HUMANOS DENUNCIA O BRASIL PERANTE A OEA
A SOS DIREITOS HUMANOS, a exemplo dos familiares das vítimas da GUERRILHA DO ARAGUAIA, denunciou no ano de 2009, o governo brasileiro na Organização dos Estados Americanos – OEA, por violação dos direitos humanos perpetrado contra a comunidade do Sítio Caldeirão.
PROJETO CORRENTE DO BEM
A SOS DIREITOS HUMANOS pede que todo aquele que se solidarizar com esta luta que repasse esta notícia para o próximo internauta bem como, para seu representante na Câmara municipal, Assembléia Legislativa, Câmara e Senado Federal, solicitando dos mesmos um pronunciamento exigindo ao Governo Federal que informe a localização da COVA COLETIVA das vítimas do Sítio Caldeirão.
PAZ E SOLIDARIEDADE,
Dr. OTONIEL AJALA DOURADO
OAB/CE 9288 – 55 85 8613.1197 – 8719.8794
Presidente da SOS - DIREITOS HUMANOS
www.sosdireitoshumanos.org.br
sosdireitoshumanos@ig.com.br
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