Fiquei guardado dentro das paredes redondas sem ver o mundo e descobri que, por mais que me pusesse na ponta dos pés aguacentos, os tijolos estariam ainda a um palmo acima de mim.
Antes do confinamento, uma camada de lama fina, mingau ocre, por vezes vermelho, marrom, estagnava-se ao meu redor e não ligava a mínima para minhas intromissões em seus domínios. Eu podia brincar com as flores do cajueiro, que despregadas pelo vento, deslizavam naquela gelatina escura, andar sobre ela, ou até entrar nela, mexê-la para lá e para cá como se eu fosse uma colher de pau a desandar um angu.
Desenvolvi nesse tempo um apurado senso de observação, que me fazia saber de imediato a quem pertencia o pé que deixara suas marcas nas margens já meio endurecidas da lama, se era de homem ou de mulher, se andava apressado ou devagar. Houve dias em que nomeei, com todas as letras, o dono ou a dona do pé. Tornei-me com a anuência de todos um profundo conhecedor de pegadas.
Meu olho tem cílios que se expandem, muitas vezes ultrapassam a fina camada de lama e desenham um círculo azulado e lacrimoso em torno dela. Do alto, é como ver um ovo a fritar, quebrado numa frigideira, a gema no centro, a clara densa, derramada por sobre a gema e por todos os lados, um lençol que embora cumprisse a sina de cobrir, o fizesse com transparências.
Quando recolho os cílios, deixo nos lugares, por onde eles se estenderam, berços de umidade que podem servir de nascedouro e abrigo às plantinhas diáfanas, às penugens verdes que farão cócegas nos pés das mulheres que se debruçam sobre mim e abrem minhas pestanas, para ver se estou vivo ou morto. Elas seguram pequenas panelas arredondadas, mergulham essas panelas dentro de mim, uma, duas, três, várias vezes. Dias há em que são muitas as mulheres. Não me dão descanso. Nem me sobra um tempo para fechar e abrir o olho, umedecê-lo, descansá-lo. Depois da saída da última mulher eu fico parado, me privo de qualquer movimento, evito a formação de bolhas, fujo das ondulações. Sereno. Porque me assalta o pavor do olho seco. Um olho precisa estar molhado, disto eu bem sei, nem que seja à custa de colírios.
Desde que fiquei preso no meio desse muro redondo, não tenho mais contato com a lama, não afago as flores empapadas do cajueiro e quase mulher nenhuma, ou mesmo homem me procuram. Ao terminar a construção da pequena muralha, os operários tocaram-me com o respeito próprio dos devotos e no meio deles um, que parecia chinês, não parava de fazer reverências, de sorrir, em frente à ponta da muralha que se unira com unhas e dentes à outra ponta. Estava finalmente concluída. E eu protegido. Preservado.
No meio da mata silenciosa, viúva de tantos animais, semi-vestida, cada dia mais nua, eu era apenas um olho. Um olho d’água. Livre.
Rejane Gonçalves
Antes do confinamento, uma camada de lama fina, mingau ocre, por vezes vermelho, marrom, estagnava-se ao meu redor e não ligava a mínima para minhas intromissões em seus domínios. Eu podia brincar com as flores do cajueiro, que despregadas pelo vento, deslizavam naquela gelatina escura, andar sobre ela, ou até entrar nela, mexê-la para lá e para cá como se eu fosse uma colher de pau a desandar um angu.
Desenvolvi nesse tempo um apurado senso de observação, que me fazia saber de imediato a quem pertencia o pé que deixara suas marcas nas margens já meio endurecidas da lama, se era de homem ou de mulher, se andava apressado ou devagar. Houve dias em que nomeei, com todas as letras, o dono ou a dona do pé. Tornei-me com a anuência de todos um profundo conhecedor de pegadas.
Meu olho tem cílios que se expandem, muitas vezes ultrapassam a fina camada de lama e desenham um círculo azulado e lacrimoso em torno dela. Do alto, é como ver um ovo a fritar, quebrado numa frigideira, a gema no centro, a clara densa, derramada por sobre a gema e por todos os lados, um lençol que embora cumprisse a sina de cobrir, o fizesse com transparências.
Quando recolho os cílios, deixo nos lugares, por onde eles se estenderam, berços de umidade que podem servir de nascedouro e abrigo às plantinhas diáfanas, às penugens verdes que farão cócegas nos pés das mulheres que se debruçam sobre mim e abrem minhas pestanas, para ver se estou vivo ou morto. Elas seguram pequenas panelas arredondadas, mergulham essas panelas dentro de mim, uma, duas, três, várias vezes. Dias há em que são muitas as mulheres. Não me dão descanso. Nem me sobra um tempo para fechar e abrir o olho, umedecê-lo, descansá-lo. Depois da saída da última mulher eu fico parado, me privo de qualquer movimento, evito a formação de bolhas, fujo das ondulações. Sereno. Porque me assalta o pavor do olho seco. Um olho precisa estar molhado, disto eu bem sei, nem que seja à custa de colírios.
Desde que fiquei preso no meio desse muro redondo, não tenho mais contato com a lama, não afago as flores empapadas do cajueiro e quase mulher nenhuma, ou mesmo homem me procuram. Ao terminar a construção da pequena muralha, os operários tocaram-me com o respeito próprio dos devotos e no meio deles um, que parecia chinês, não parava de fazer reverências, de sorrir, em frente à ponta da muralha que se unira com unhas e dentes à outra ponta. Estava finalmente concluída. E eu protegido. Preservado.
No meio da mata silenciosa, viúva de tantos animais, semi-vestida, cada dia mais nua, eu era apenas um olho. Um olho d’água. Livre.
Rejane Gonçalves
3 comentários:
Socorro,
Quem é Rejane Gonçalves ?
Choquei nesse texto !
Que escrita.
Que comparações.
Toma que é teu Cariricaturas.
Edilma, Rejane é uma pessoa especial. Silenciosa, observadora, serena. Faz tudo com muita calma, mas sua alma é um rebuliço, por isso escreve tão bem, cada vez melhor, com competência, propriedade, lucidez e profundidade.
É pernambucana, casada com Pedro Valdevino Brito, meu primo, cratense como nós. Os dois foram colegas de Socorro no Banco do Brasil.
Pois é, o mundo tá cheio de gente boa. beijos.
Edilma, Stela disse tudo !
Conheci rejane em 1975, no recife. Ela já escrevia desse jeito. Impressionante !
Stela traçou o perfil da nossa amiga com muita fidelidade.
E por falar em rejane, precisa lembrar que o convite como colaboradora oficial continua em aberto. Pedro tbém vem sendo esperado.
Abraços pra eles .
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