Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 1 de julho de 2010

Um dia de partir - Emerson Monteiro

Em um sonho recente, me vi menino outra vez. Menino bem à época quando parti com minha família do sítio onde nascera, em Lavras da Mangabeira, e viemos viver na cidade, em Crato, na região do Cariri cearense. Sei explicar pouco daquilo tudo, via, no entanto, sacudido de emoções e movimento, a hora da mudança; caminhão, jipe, malas, cacarecos espalhados pela calçada, na casa que meu pai construíra próxima da capelinha do sítio, em colina que divisava lá longe a bagaceira do engenho, a casa grande em que moravam meus avós paternos, uma represa do açude velho e o engenho. Logo embaixo passava, e fazia curva, a estrada principal que levava aos outros sítios mais acima, Grossos, Caraíbas, Santa Catarina, outros mais.
Via-me entre tantas esperas de desconhecido como nunca antes. Eu, menino dos matos, de poucos carros, multidão nenhuma, ignorante de gelo, calçamento. O que sabia de pessoas aglomeradas coubera no terreiro da casa grande na noite em que minha avó promovera uma quermesse de leilão para arrecadar recursos e restaurar a capela. Muitas prendas foram postas numa mesa grande e chegou gente de tudo quanto foi canto, dos lugares em volta. Daí, arriscar sair para mais longe, de onde meu pai voltava todo final de semana e preparara as coisas a fim de irmos morar, seria tarefa das maiores, na cabeça de uma criança de quatro anos.
Mas não me consultaram se queria largar para trás vacas, bezerros, ovelhas, jumentos, galinhas, pássaros, brisa gostosa das paredes de açude, as nuvens, a máquina de costura de minha mãe a cantar que eu observava nas manhãs da varanda, as raposas que meu pai pegava nas armadilhas deixadas no quintal da casa em incursões perversas ao poleiro das galinhas. A casa que só tinha de cimento queimado alguns cômodos, enquanto os demais eram de tijolo rústico, quase chão batido, em que mijávamos na absoluta naturalidade pelo fundo da rede, nas noites frias do sertão.
Fui sendo arrastado naquela voragem esquisita. Minha mãe chorava inconsolavelmente; meu pai preocupado, no meio do povo, a dar ordens na arrumação dos trens; os outros irmãos, Everardo, Lydia, os mais velhos, e Sônia, a mais nova, se perdiam com facilidade em meio àquilo tudo de partida sem esperança de um dia retornar a não nas férias do meio do ano, que aos poucos foram perdendo a graças, na concorrência dos novos apegos da cidade, colégios, amigos, namoradas, filmes, revistas, sorvetes, chocolates, pão do reino, essas bugigangas embusteiras dos mundos industrializados.
Saía de jeito esquizofrênico, forçando a originalidade das coisas no coração da gente, sem ser perguntado se desejava ir, levado para fora do universo inocente onde fora posto também sem ser perguntado. Lembro de poucos detalhes daquela peça rigorosa pregada pelo destino. Uns pedaços de memória afloraram nessa hora de sonho, contudo em algum lugar habita ainda um forte sentimento de saudade particular de mim mesmo, bicho assustado de saudade encolhido no lugar misterioso do qual, vez em quando, resolve sair para pregar das suas e enfiar de com raiva as unhas nos molhes abandonados do tempo, nessas avenidas longas do inconsciente.

3 comentários:

socorro moreira disse...

Grande parte das mudanças de vida acontecem sem interrogações.
No final , quem ganha é o destino. O livre arbítrio não conta em tudo.
Acho que são essas pequenas partidas que nos preparam para o desprendimento maior. Senti um pesar enorme lendo as tuas memórias. Pensei sobretudo nos meus filhos , que entravam no caminhão das mudanças , sem opinarem. Imagino quantas lágrimas furtivas não derramaram ...Desnaturadamente eu seguia, sem olhar para trás. Hoje tudo que quero é não pegar estrada nem por terra, nem por mar.Esperar a viagem fatal e desconhecida , quando a canseira da vida me tomar !

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

O Emerson Monteiro bem diz da enorme revolução que ocorreu no Brasil. Que foi política, econômica e cultural. Profundamente cultural. No Brasil e praticamente em todo o mundo. Após os anos 30 os brasileiros puseram o pé na estrada e por 60 fizeram esta travessia num tempo até maior do que aquele de Moises. Numa mudança muito maior para o povo do que aquela foi para Israel. Ali Israel deixava de ser Egito e se tornava um em particular. Aqui, deixávamos de ser um particular para nos tornarmos cósmicos. Afinal esta travessia dolorosa para a sociedade cosmológica tipicamente humana (não que a agropecuária não já fosse parte desta) ou melhor, quase que exclusivamente humana. Sua razão, sua criatividade, suas incertezas com o ilimitado. Como minha querida Socorro pensa, não é na viagem fatal e desconhecida, que todos vamos, é nesta viagem da humanidade para uma civilização exclusivamente humana, sob o controle de elementos que teimam em se descontrolar.

Edilma disse...

Emerson,

Estou muito ocupada estes dias e não tenho escrito nada por aqui, mas eu ler as suas lembranças de menino abandonando o seu chão, não me contive e estou aqui...
Conhecer um pouco da sua vida é emocionante. Confesso que fiquei tensa na leitura imaginando a sua dor em deixar para tras o seu mundo de menino simples e temer a incerteza do que seria a sua vida naquela cidade estranha. Aprendi nesta vida que devemos saber nos despedir das coisas que amamos. Afinal esta vida é sempre uma despedida. Quando dizemos até amanhã não sabemos ao certo se dizemos adeus... Tudo muda e passa neste mundo louco em que vivemos. As vezes nunca nos imaginamos vivendo situações que hoje são realidades. Feliz dos que mudam e são recompensados com vitorias feito você. Não lhe conheço muito mas conheço o suficiente nos seus escritos e nas poucas oportunidades juntos. Acho que a mudança lhe fez bem e o transformou nesta pesssoa calma, passiva e sensata, seu sorriso é terno e seus gestos são meigos.
Tenha a certeza de que aquele caminhão de mudanças tinha que acontecer no seu mundo infantil...
Grande abraço!