Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Concris

Nestes dias, após a eleição do Tiririca, com um recorde de votos e a reação da inconformada elite brasileira querendo a todo custo cassá-lo, sob a acusação de analfabetismo, tomei a velha sopa de volta para Matozinho. Lá já se havia de há muito provado que existem outras universidades na vida além do banco da escola regular. Confunde- se tantas vezes inteligência com informação; ciência com sapiência; conhecimento com honradez. Matozinho, antes do Brasil, já havia provado não existirem tais similitudes.
Já falei de Pedro do Rodo que se fizera um dos maiores líderes políticos da cidade. Semi-analfabeto, evoluíra ,de simples crediarista, a ocupar os mais importantes cargos políticos : vereador, prefeito por várias legislaturas, deputado estadual, secretário de agricultura do estado. Sabia falar a doce língua de seu povo, comunicava-se muito bem, sem riquififes, sem ponto-e-vírgula. Nunca perdera uma eleição em Matozinho e enfrentara, por diversas vezes, candidatos embebidos no saber teórico dos rios universitários. Sabedor das mais profundas necessidades do povo, preocupava-se no o arroz-com-feijão, pragmático fugia dos elefantes brancos como o cão do crucifixo. De que adiantava asfalto nas ruas, sem saneamento? Praças bonitas arrodeadas de casebres? Televisão na sala, sem panela no fogo? Pedro sabia de cor e salteado essa cartilha: o supérfluo não podia vir antes do essencial. Estratégico, alimentava esse mito, o mesmo que perpetuou Cancão de Fogo e João Grilo: o do beradeiro, com cara de abestado que dá nó em pingo d´água e piau em professor de faculdade. Aprendera que a esperteza é a única defesa do pobre. Vestia-se e portava-se como um lesado, um Zé-Mané : fingia-se de morto para tomar de graça o caldo do velório e tirar dedada no coveiro.
São muitas as peripécias do nosso Rodo, mundo afora. O povo de Matozinho foi colecionando, nas páginas da oralidade, estas mungangas, como um dia já tinha coletado as de um outro Pedro : o Malasartes. Reuni duas dessas passagens , no intuito de mostrar que existem Tiriricas e mais Tiriricas mundo afora e que geralmente, apesar do nome, não são ervas daninhas.
Em época de Pedro , o principal político do estado era Tranquilino Rubião. Ao contrário dele, Tranquilino era culto, formara-se em ciências políticas na Sorbonne e dominava várias línguas. Talvez, por isso mesmo, criara grande afeição por Pedro, aproximação essa que se fizera também no campo da política partidária. Ambos transitavam no velho PTB, em tempos de Getúlio e de Brizola. Estas duas histórias aconteceram, com intervalo de muitos anos, em tempos em que coincidentemente Rubião era governador e Pedro prefeito de Matozinho.
Um belo dia Pedro adentra o Palácio do Governo, na capital, e se dirige diretamente para o gabinete do governador, onde tinha passagem livre e acesso facilitado. Ao penetrar na sala de Rubião , após os cumprimentos de praxe, “do Rodo” vai direto ao assunto. Estava precisando construir uma creche na Serra da Jurumenha, pois as famílias ,,trabalhando na roça não tinham com quem deixar os filhos. Além de tudo, aquela localidade sempre se mostrara um colégio eleitoral importante na Vila e, ademais, tinha sido promessa de campanha. Rubião comprometeu-se com a causa, pediu, no entanto, que o prefeito trouxesse alguma coisa mais concreta, um projeto ou coisa assim. Pedro explicou que não tinha como fazer esse tal de Projeto que aquilo era especialidade da SUDENE que vivia projetando, projetando e nada fazendo. Tranquilino imaginando a dificuldade para se confeccionar um bicho daquele em Matozinho, resolveu facilitar:
---- Pedro, pois traga ao menos um croquis do local onde você pretende construir a creche, entendeu? A gente calcula , por aqui, o orçamento e eu libero a verba!
Pedro se despediu rápido e agradeceu pela acolhida. Negócio feito !O quanto devia Matozinho a Tranquilino ! Aqui, necessitamos de uma pequena explicação. Nas terras matozenses existiam muitos sofreus. Aquele pássaro bonito, multicolorido e cantador e que em alguns lugares se chama também de Corrupião. Em Matozinho, conhecia-se o bicho como Cronquis. Pois bem, na semana seguinte, Pedro , sorriso nos lábios, salta no gabinete de Rubião, com um cronquis mansinho no dedo e vai logo gritando:
--- Pronto Rubião, taqui o cronquis que você pediu! Foi o bicho mais cantador que eu encontrei em Matozinho! Por falar nisso, rapaz, onde é que eu pego o dinheiro para fazer a creche, hein?
De uma outra feita, Pedro resolvera , finalmente, encanar água em toda cidade, puxando, por gravidade do Açude do Sabugo. As casas ainda eram abastecidas por ancoretas carregadas em burro . Na época da seca, então ,ficava toda a vila a mercê de carros-pipa. “Do Rodo” partiu para a capital, no intuito de pedir, ao governador os canos. Não seria fácil de conseguir, uma vez que a quantidade necessária para a obra era enorme. Após descer na rodoviária da capital, quando se dirigia ao hotel, Pedro viu , no pátio da REFESA, uma montanha de canos, das mais variadas dimensões, aguardando embarque. Informou-se e soube que pertencia ao governo estadual e estavam transportando para um projeto de irrigação no norte do estado.No gabinete do governador, Pedro expôs, então a situação do abastecimento de água em Matozinho e pediu ajuda do governador. Traquilino não negou ajuda, mas por conta da crise , informou : só poderia adiantar alguma coisa no ano vindouro. Pedro, então, humildemente explicou que passando defronte da REFESA tinha visto vários canos pertencentes à administração estadual, jogados a um canto e todos furados. Solicitou, então, ao governador, que liberasse, por enquanto ,aqueles canos furados, que ele aproveitaria, de alguma maneira, em Matozinho e já daria prá ir tocando a obra. Rubião, então, interrogou-o se tinha certeza de que eles estavam nessa situação. “Do Rodo’ confirmou : hoje mesmo havia verificado in loco a questão. Tranquilino conhecia o prefeito e sabia que, na sua simplicidade, não era homem de mentira. Redigiu, então, de próprio punho, um bilhete ao diretor da autarquia, solicitando a liberação dos canos para Pedro.
O prefeito de Matozinho, de posse do documento, se avexou. Contratou três scanias truncadas, encheu com os canos da REFESA, apresentando o bilhete do governador e partiu para a vila. Uma semana depois, recebeu um telefonema de um governador chateado. Tinha sido enganado por Pedro, que havia descaradamente mentido para ele, os canos eram todos novos e iam para o Projeto de Irrigação.
--- Você mentiu para mim, Pedro ! Eu confiei em você, você me prometeu que os canos eram velhos e imprestáveis e são novinhos em folha!
Pedro , não se alterou e respondeu de lá:
--- Num se avexe não, homem de Deus! Eu não menti de jeito nenhum! Eu nunca disse prá vocimicê que os canos eram novos, eu disse que os canos eram furados !
Rubião, irritado, saltou do lado de lá:
--- Pois é! Esses canos que eu liberei são novinhos em folha, não são furados de jeito nenhum!
Pedro, então, fechou o firo:
--- Governador, todo cano é furado! Se num for furado, Cuma é que corre água pro dentro dele, homem de Deus?

J. Flávio Vieira

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