Pesquisador mostra que a linguagem fez o levante ficar na memória, apesar dos esforços oficiais de riscá-lo do mapa
Estrelas de Aço: A estética do cangaço (Escrituras Editora, 258 páginas, R$ 150, 2010) é livro de arte com mais de 300 fotos. A obra, que tem fotos inéditas, prefácio de Ariano Suassuna e ilustrações do arquiteto Antônio Montenegro, é resultado de 13 anos de pesquisa e 25 anos de estudo. Historiador e advogado, Pernambucano de Mello foi procurador federal em Recife e, de 1972 a 87, integrou a equipe do sociólogo Gilberto Freyre na Fundação Joaquim Nabuco. Especializou-se nos conflitos da história nordestina, em particular os levantes populares que não se sujeitavam aos valores coloniais, como os "guerreiros do sol", como chama os cangaceiros.
Dono de um acervo com mais de 160 objetos do cangaço, Pernambucano de Mello pretende um dia criar um museu. Até lá, acredita que a vingança do cangaço à derrota militar está em sua estética, expressa em seu vestuário simbolizado pelo chapéu em meia-lua com estrela e na linguagem popular nordestina, que até hoje se instala na fala e na cultura da região.
A suntuosidade das roupas do cangaço fez Mello reiterar a análise antecipada por Língua em 2006, pelos pesquisadores Leandro Cardoso Fernandes e Antonio Amaury Corrêa de Araújo, segundo a qual a imponência da indumentária no cangaço só encontra paralelo na história dos conflitos humanos nas figuras do samurai japonês e do cavaleiro medieval europeu.
A riqueza de vestuário e linguagem forma, para o historiador, o traço arcaico do homem ligado ao místico e ao divino. Para os cangaceiros, os elementos estéticos faziam com que ultrapassassem a sua condição, criavam uma blindagem alegórica que os descolava de seus crimes.
Sua indumentária cheia de adereços era versão das roupas de vaqueiros, adaptada ao meio e ao cenário. As abas do chapéu de couro permitiam visão lateral, o que evitava emboscadas. Aberta na frente, a alpercata de rabicho protegia o pé de espinhos e do calor. Para carregar até 30 quilos de peso, o cangaceiro usava bornais na lateral, enquanto os "macacos" (soldados) eram obrigados a usar mochilas concentrando todo o peso nas costas, tirando seu ponto de equilíbrio.
A importância da palavra no cangaço integrava a imagem que os bandos queriam transmitir de si mesmos. Para Fernandes e Araújo, novos membros do bando ganhavam um "vulgo" (apelido) a que deviam honrar. Em caso de morte, quem o substituía herdava o vulgo, para perpetuar e imortalizar a reputação do cangaceiro.
Imponência
Os cangaceiros foram donos de uma riqueza vocabular própria, mais rica que os manjados termos a eles associados, como "volante" (equipe móvel de perseguição policial) e "macaco" (soldado). Para Fernandes e Araújo, muitos termos usados pelos bandos não eram conhecidos do sertanejo comum e formavam um jargão militar próprio. Com o fim do movimento, parte dos termos passou a ser usado de maneira corrente no sertão. Nem sempre de forma duradoura - algumas palavras terminaram esquecidas, como "gargulina" (enjoo), "desaprecatado" (desprevenido), "jabiraca" (lenço de pescoço).
Para Pernambucano de Mello, a estética do cangaço tornou o cangaço um mito primordial brasileiro. Em sua opinião, os cangaceiros não eram criminosos comuns, que tentam se misturar ao ambiente para não serem notados.
Não se camuflavam, nem se escondiam: faziam do estardalhaço visual, e verbal, seu cartão de visita.
Partes das armas brancas e punhais dos cangaceiros: nomenclatura própria | Esquema da cartucheira, por Antonio Montenegro, e modelo usado no Ombro por Lampião (foto), em 1938: linguagem ornamental | |
Detalhe dos nomes dados pelos cangaceiros às partes do chapéu de estrela e os protetores de Lampião: aprumo vocabular era também visual | ||
Cantil de viagem longa de Lampião, em 1932: cores vivas | ||
Cangaço triunfou mesmo com morte de Lampião, com vestuário e traços na linguagem popular | Utensílios como os de Lampião recebiam nomes do cangaço e faziam sua reputação | |
Maria Bonita e seus adereços, com a jabiraca(lenço) e suas joias: léxico requintado | ||
Nomeclatura dos bornais, acima, e roupas e armas de Maria Bonita (foto), abaixo | ||
Vocabulário da cartucheira | |
Arreiado - Cangaceiro ou soldado bem equipado. "Arreio" é cartucheira. Botada - Ataque surpresa. Brigada - Combate. Carrego - Bagagem do cangaceiro/soldado, derivado de "carregamento". Costureira - Metralhadora. Também "fuzil de gancho". Coito - Acampamento de cangaceiros. Deu origem a "coiteiro", pessoa que ajudava cangaceiros, quem lhes dava coito. Corta rastro - Expressão tirada do vocabulário dos vaqueiros à caça de reses desgarradas, nomeava a técnica de comparar pegadas para achar o rastro de cangaceiros (muitos usavam sapatos com falsas solas invertidas).Papo de ema - Reservatório perto das cartucheiras para guardar dinheiro. Rastejador - Guia das volantes que decifrava os rastros na terra. Rua - Cidade. Russeio - Barulho. Torneira - Casa com buraco na parede para pôr fuzil e reagir a ataque. Tracação, melodia - Nomes dados ao coito, à diversão sexual. Fonte de pesquisa: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12223 |
5 comentários:
Estimada Claude, fico lisonjeado pela dedicatória de sua postagem; por sinal, um primor, abordando a espetacular obra do amigo Frederico; de coração, muito obrigado por tua gentileza.
Certamente o cangaço deixou diversas e importantes marcas em nossa sociedade sertaneja. Além da selvageria, da crueldade, da violência, temos uma outra abordagem que nos remete ao universo fantastico de todas as marcas deixadas por esses guerreiros do sol.
Na música, na dança, na comida, no vocabulário, na medicina, na arte...na estética.Estrelas de Couro, o livro do amigo Frederico, nos apresenta essas nuances em toda sua dimensão, chegando a assutar, tamanha capilaridade.
Hoje, como amantes da temática, vivemos um novo momento, e o Cariri Cangaço é uma prova disso, cada vez mais percebemos a busca pelo estudo sério e responsável sobre a temática, sem dúvida instrumentos importantes para a construção das verdades históricas, da compreensão daquelas sociedades do final do século XIX e inicio do ´secuo XX, da personalidade daqueles sertanejos, homens e mulheres, crianças alguns...de como se davam as relações, as expectativas, enfim. O cangaço deixou de ser apenas Virgulino e hoje se mostra em sua magnitude como fenômeno ímpar dentro do contexto da história de nosso Brasil e Nordeste.
Um abraço,
E, já começamos a construção do Cariri Cangaço 2011, imaginamos que teremos nesta edição de 2011 um número recorde de participantes em eventos do gênero.
Manoel Severo
O livro do pesquisador Frederico Pernambucano de Melo é uma dessas relíquias da historiagrafia nordestina.
Gostaria de parabenizar a este conceituado blog CARIRICATURAS, seus colaboradores e ao senhor Severo, realmente um grande incentivador das artes e que com muito trabalho, uma boa equipe e seriedade, conseguiu construir ai no Ceará, o maior evento do cangaço no Brasil.
Saudações,
Fernando Cesar Lima Verde
Campina Grande
Severo,
Quando encontrei este artigo, de imediato me lembrei de você. Sobretudo pela descrição detalhada dos argumentos apresentados e também pelo tema que se encaixa direitinho nos seus estudos e pesquisas e interesses.
Se quiser usar a postagem no Cariri Cangaço, esteja à vontade. Abaixo da postagem está o endereço de onde encontrei o artigo.
Agradeço pelo tratamento gentil que sempre me dispensa.
Abraço,
Claude
Claude,
Na verdade nós é que agradecemos toda a sua atenção e carinho; muito obrigado por nos permitir replicar a postagem, que o faremos com certeza.
Abraços,
Severo
Prezado Lima Verde, agradecemos em nome de todos que fazem o Cariri Cangaço, suas palavras de incentivo. Muito obrigado.
Manoel Severo
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