Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

ENVIE SUA FOTO E COLABORE COM O CARIRICATURAS



... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


FOTO DA SEMANA - CARIRICATURAS

Para participar, envie suas fotos para o e-mail:. e.
.....................
claude_bloc@hotmail.com

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Homem sonhando o mundo - Por Ronaldo Correia de Brito


Quando tio Gustavo retornou do Sul, era madrugada. Ouvi os latidos dos cachorros, as batidas na porta da nossa casa e o nome do meu pai gritado alto. Depois escutei minha mãe chorando, transtornada com a magreza do tio, seu semblante envelhecido. Tudo se passando junto de mim, em torno da rede em que eu fingia dormir para escutar as histórias que nunca me contavam.

- Menino não precisa saber certas coisas - era o que diziam me enxotando para longe da roda dos mais velhos.

Ofereceram ao tio o pouco que havia em casa: rapadura, queijo, coalhada fresca. Antes, o tio não comia esses alimentos rudes. A fome e o sofrimento na terra distante acabaram seus orgulhos de homem.

- O Sul não existe - falou enquanto mastigava. É pura invenção de violeiro repentista. Eles enchem a cabeça da gente de promessas mentirosas. Viajar é o mesmo que correr atrás de fumaça.

Mamãe olhava o irmão, em seguida olhava meu pai, arrumava a roupa vestida às pressas, sem a ajuda de um espelho. Era a mais inquieta de todos nós, a que menos compreendia o mundo nebuloso de onde tio Gustavo retornava. Para ela, além do Sertão só existiam a Amazônia e o Sul.

- O que é o Sul? Se não perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço. Meu pai me dava instrução para o dia em que eu tivesse de migrar. Aprendera a ler sozinho e me ensinava tudo o que sabia. Nossos livros estavam gastos, de tanto passar de mãos. Não eram muitos: A História Sagrada, As Mil e uma Noites, o Romance de Carlos Magno e os Doze Pares de França, A Ilíada. Para que precisávamos de mais livros? Toda sabedoria do mundo estava ali. Sem transpor os cercados da fazenda, conhecia as cidades da Terra: as de antigamente e as de agora.

- Você foi ao Mato Grosso? - perguntou meu pai.

- Fui, comecei a viagem por lá. Trabalhava numa fazenda de café. Os grileiros me fizeram de escravo. Nunca via cor do dinheiro, pois estava sempre devendo ao barracão. Tomaram minhas roupas e até o fumo do cigarro eles controlavam. Tive malária e pensei que fosse morrer. Ninguém daqui sabe o que uma febre. Ela chegava sempre na hora certa. Era a única certeza naquelas paragens. Quando senti que ia morrer, fugi por dentro da mata. Nem sabia para que lado ficava o norte. Desaprendi a olhar o céu e a me guiar pelas estrelas. Só enxergava a copa das árvores.

O tio enrolou um cigarro na palha de milho e de onde eu estava senti o cheiro conhecido do fumo. Quando crescesse eu também fumaria como todos os homens.

- Atravessei muitos rios até chegar à cidade; quase morro. Mas estou de volta e é como se nunca tivesse saído pra lugar nenhum.

- Você viu a cidade? - perguntou meu pai, com sua calma habitual.

Sem mexer-me na rede, para não descobrirem que eu escutava a história e via o alvoroço da família, busquei imagens dos meus livros para ilustrar a conversa misteriosa dos adultos.

- Fale da cidade - pediu minha mãe.

- A cidade é tão conhecida, que nem é preciso visitar. A gente tem na memória.

Contou sobre o que eu mais esperava ouvir. O viaduto elevado como os jardins suspensos da Babilônia, maravilha do mundo por onde passavam pessoas e carros. Embaixo, plantações de flores trazidas do levante e do poente. A torre de uma catedral gótica, parecendo o minarete de uma mesquita de Bagdá. Cheguei a ver o califa Harum al Raschid, suas duas mil concubinas e o muezim anunciando a oração para os fiéis. Lembrava um aboio de vaqueiro tangendo o gado no fim de tarde. Embalado pela voz do tio, avistei um primo no exílio da Babel, erguendo as paredes de um edifício alto. O elmo rolava da cabeça, ele tombava anônimo das muralhas do castelo franco e ficava caído no chão de asfalto da cidade. Ninguém chorava por ele.

O resto se confundiu nos sonhos, como a noite no dia que principiava.


Ronaldo Correia de Brito é médico e escritor. Escreveu Faca, Livro dos Homens e Galiléia.

Um comentário:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Este texto do Ronaldo é a exata mistura de sua vida para fora e por dentro. Ele já nos diz tudo pelo hábito da leitura, quando chega ao último parágrafo faz tantas referências de leitura que nos perdemos na quantidade. Por por fora ele já me disse que a memória é um mundo que não o deixa em paz. Me disse que lembrava de coisas que talvez eu nem gostasse. Mas como não gostar de um escritor tão bem atento como este?