Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Cego Aderaldo

"Eu venho de muito longe, desde o dia 24 de junho de 1878. Sou filho da cidade do Crato, onde nasci em modesta casa da Rua da Pedra Lavrada, atualmente Rua da Vala. Meu pai, Joaquim Rufino de Araújo, era alfaiate. Minha mãe, Maria Olímpia de Araújo, era de prendas domésticas, como devem ser todas as mulheres. Meu sofrimento, na vida, vem também de muito longe.
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Quando eu tinha pouco mais de dois anos, perdi meu pai. Lá ouviram falar em homem que tem ataque de congestão? Aquele velho e honrado alfaiate, que largara Crato para viver em Quixadá, aonde viera buscar fortuna, fora agarrado pela desgraça. Que pode fazer um alfaiate mudo, surdo e aleijado? Desde esse momento a necessidade entrou em nossa casa. Entrou e se abancou. Eu, com idade de cinco anos, tive que trabalhar na casa do Sr. Miguel Clementino de Queiroz. .. E era com esse dinheiro que eu podia sustentar meu pai."
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Trecho da autobiografia do Cego Aderaldo no Blog:
http://culturanordestina.blogspot.com/2007/09/cego-aderaldo-biografia.html
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Aderaldo Ferreira de Araújo, o Cego Aderaldo, nasceu no dia 24 de junho de 1878 na cidade do Crato — CE. Logo após seu nascimento mudou-se para Quixadá, no mesmo estado. Aos cinco anos começou a trabalhar, pois seu pai adoeceu e não conseguia sustentar a família. Tomou conta dos pais sozinho. Quinze dias depois que seu pai morreu (25 de março de 1896), quando tinha 18 anos e trabalhava como maquinista na Estrada de Ferro de Baturité, sua visão se foi depois de uma forte dor nos olhos. Pobre, cego e com poucos a quem recorrer, teve um sonho em verso certa vez, ocasião em que descobriu seu dom para cantar e improvisar. Ganhou uma viola a qual aprendeu a tocar. Mais tarde começou a tocar rabeca. Algum tempo depois, quando tudo parecia estar voltando à estabilidade, sua mãe morre. Sozinho começou a andar pelo sertão cantando e recebendo por isso. Percorreu todo o Ceará, partes do Piauí e Pernambuco. Com o tempo sua fama foi aumentando. Em 1914 se deu a famosa peleja com Zé Pretinho (maior cantador do Piauí). Depois disso voltou para Quixadá mas, com a seca de 1915, resolveu tentar a vida no Pará. Voltou para Quixadá por volta de 1920 e só saiu dali em 1923, quando resolveu conhecer o Padre Cícero. Rumou para Juazeiro onde o próprio Padre Cícero veio receber o trovador que já tinha fama. Algum tempo depois foi a vez de cantar para Lampião, que satisfez seu pedido — feito em versos — de ter um revólver do cangaceiro.
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Tentando mudar o estilo de vida de cantador, em 1931, comprou um gramofone e alguns discos que usava para divertir o povo do sertão apresentando aquilo que ainda era novidade mesmo na capital. Conseguiu o que queria, mas o povo ainda o queria escutar. Logo depois, em 1933, teve a idéia de apresentar vídeos. Que também deu certo, mas não o realizava tanto. Resolveu se estabelecer em Fortaleza em 1942, onde veio a abrir uma bodega na Rua da Bomba, No. 2. Infelizmente o seu traquejo de trovador não servia para o comércio e depois de algum tempo fechou a bodega com um prejuízo considerável.
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Desde 1945, então com 67 anos, Cego Aderaldo parou de aceitar desafios. Mas também, já tinha rodado o sertão inúmeras vezes, conseguira ser reconhecido em todo lugar, cantara pra muitas pessoas, inclusive muitas importantes, tivera pelejas com os maiores cantadores. E, na medida em que a serenidade, que só o tempo trás ao homem, começou a dificultar as disputas de peleja, ele resolveu passar a cantar apenas para entreter a alma. Cego Aderaldo nunca se casou e diz nunca ter tido vontade, mas costumava ter uma vida de chefe de família pois criou 24 meninos.
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Texto extraído do livro "Eu sou o Cego Aderaldo", prefácio de Rachel de Queiroz, Maltese Editora — São Paulo, 1994.


Leonardo Mota, Jacó Passarinho e o Cego Aderaldo

O Cego Aderaldo, personagem da mitologia nordestina, deve a um folheto de cordel muito do seu prestígio lendário. Aderaldo Ferreira de Araújo não nasceu cego. Perdeu as “vistas” aos dezoito anos, num desastre de trem na estrada de Baturité. Era o maquinista. A partir daí adotou a profissão errante dos aedos. Nesta condição o folclorista Leonardo Mota o encontra em princípios dos anos de 1920. E anota a partir de depoimento de Aderaldo a versão para a sua cegueira. Ao citar algumas estrofes do velho trovador Luiz Dantas Quesado, que davam conta de coisas impossíveis, Mota ouviu e anotou estas duas estrofes, imaginando-as saídas da cachola de Aderaldo:

“Só nos falta vê agora
Dá carrapato em farinha,
Cobra com bicho-de-pé,
Foice metida em bainha,
Caçote criá bigode,
Tarrafa feita sem linha.

Muito breve há de se vê
Pisá-se vento em pilão,
Botá freio em Caranguejo,
Fazê de gelo carvão,
Carregá água em balaio,
Burro subi em balão”.

Impressionado, Mota depõe em Cantadores (1921): “Se o cantador cego Aderaldo foi, inquestionavelmente, o de melhor voz de quantos com quem hei tratado, está, ainda, entre os de mais apreciável veia poética Estas duas estrofes, contudo, segundo o poeta popular Arievaldo, são de Leandro Gomes de Barros, do folheto O Galo Mysterioso, Marido da Galinha de Dentes, reeditado pela Editora Queima-Bucha de Mossoró. Entretanto, é ao poeta de bancada Firmino Teixeira do Amaral que Aderaldo deve boa parte da fama amealhada. A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum, dada por muitos como acontecida, foi composta por Firmino, então funcionário da Editora Guajarina, de Belém do Pará, antes de 1920, pois já é citada no livro de Leonardo Mota, pelo cantador cearense Jacó Passarinho. Estão nesta peleja os impagáveis trava-línguas que a memória coletiva absorveu. Os cantadores são indicados por letras iniciais de seus nomes de guerra. Aderaldo:A; Zé Pretinho: P. Então, vamos às amostras:

“P.: Eu vou mudar de toada
Pra uma que mete medo
- Nunca encontrei cantador
Que desmanchasse este enredo:
É um dedo, é um dado, é um dia
É um dia, é um dado, é um dedo!

C.: Zé Preto, este teu enredo
Te serve de zombaria:
Tu hoje cegas de raiva
E o diabo será teu guia -
É um dia é um dedo, é um dado
É um dado, é um dedo, é um dia!

P. : Cego, respondeste bem,
Como quem fosse estudado!
Eu, também, da minha parte,
Canto versos aprumado –
É um dado, é um dia, é um dedo,
É um dedo, é um dia, é um dado!

C.: Vamos lá, seu Zé Pretinho,
Porque eu já perdi o medo:
Sou bravo como um leão,
Sou forte como um penedo -
É um dedo, é um dado, é um dia
É um dia, é um dado, é um dedo!”

Zé Pretinho, pra sua infelicidade, pede, então, a Aderaldo que puxe uma bela toada. E o Cego se sai com esta:

“C.: Amigo José Pretinho,
Eu nem sei o que será
De você depois da luta -
Você vencido já está!
Quem a paca cara compra
Paca cara pagará!

P.: Cego, eu estou apertado
Que só um pinto no ovo!
Estás cantando aprumado
E satisfazendo o povo -
Mas esse tema da paca
Por favor, diga de novo!

C.: Disse uma vez, digo dez -
No cantar não tenho pompa
Presentemente, não acho
Quem o meu mapa me rompa -
Pagará a paca cara
Quem a paca cara compra!

P.: Cego, teu peito é de aço,
Foi bom ferreiro que fez -
Não pensei que cego tinha
No verso tal rapidez!
Cego, se não for maçada,
Repete a paca outra vez!

C.: Arre! Que tanta pergunta
Desse preto Capivara!
Não há quem cuspa pra cima
Que não lhe caia na cara -
Quem a paca cara compra
Pagará a paca cara!

P.: Agora, Cego, me ouça:
Cantarei a paca já
Tema assim é um borrego
No bico de um carcará!
Quem a caca cara compra
Caca cara cacará!”

A peleja, neste vacilo de Zé Pretinho, é vencida por Aderaldo. Embora tenha se tradicionalizado, e muitos ainda a dêem por real, a Peleja, como foi exposto supra, é tão fictícia quanto o Zé Pretinho que nela apanha de Aderaldo, e que é confundido com o grande Zé Pretinho do Crato, criador do galope à beira-mar. Firmino Teixeira do Amaral, que o saudoso Professor Átila Almeida dá como cunhado do Cego Aderaldo, é ainda, conforme este autor, “o mais brilhante poeta popular que já deu o Piauí, um dos melhores do Nordeste”.

Raquel de Queirós acreditava piamente que tal disputa poética ocorreu. Cria ainda que o Cego pelejou com Frankalino, transcrevendo como dele versos do mesmo e imortal Firmino. O poeta Antônio Américo de Medeiros, residente em Patos, Paraíba, colheu esta sextilha de um suposto encontro havido entre Aderaldo e Lampião, onde o menestrel louva o Rei do Cangaço:

“É esta a primeira vez
Que canto pra Lampião,
A maior autoridade
Que cruza todo o sertão,
Fazendo medo a alferes,
Tenente e capitão.”

Como boa parte da produção atribuída a Aderaldo, não se sabe se esta estrofe também pertence aos domínios da lenda. O fato é que Aderaldo foi uma grande alma, tendo adotado, em seus 85 anos de vida, vinte e seis meninos, inicialmente seus guias. Com o tempo, abandonou a prosaica rabeca e passou a trabalhar com um velho projetor de filmes. Quando morreu a 30 de junho de 1967, em Fortaleza, foi cantado e pranteado como um rei. Prova irrefutável que a lenda havia sido impressa com letras indeléveis no Livro da Imortalidade.
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Notas:
1. Parte da famosa Peleja foi reaproveitada por João do Vale e Nara Leão e registrada no disco Opinião, de 1965.
2. A minissérie global Hoje é Dia de Maria também utilizou trechos do trava-língua da paca, com o qual a esperta Maria ludibria o demônio Asmodeu.

3. "Segundo entrevista do próprio Cego Aderaldo ele cegou da seguinte maneira: Chegou em casa meio dia em ponto com o corpo muito quente e tomou um copo de água fria, logo em seguida sua vista começou a escurecer... Durante toda a sua vida Aderaldo se questionou como um simples copo d'água podia cegar uma pessoa. Perguntei ao médico oftalmologista e cordelista Breno de Holanda se isso era possível, simplesmente ele não soube responder. Na verdade foi uma fatalidade. Aderaldo tinha muita vergonha de pedir esmola, fez uma promessa com São Francisco de Canindé para encontrar um meio de ganhar a vida sem precisar mendigar, à noite sonhou com inúmeras estrofes, daí então descobriu seu dom poético e não parou mais de cantar. "
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