Próximo ao meio-dia, parece que tinham tocado as doze badaladas da Cinderela. Antes que a gala se transformasse em borralho , o piquenique deu-se por findo. Na beira da praia ficou toda a obra de criação: castelos, palácios, palavras, barragens , músicas e contemplação . Tardezinha, quando os pescadores retornavam do trabalho, a maré havia engolido tudo. Nada havia restado que lembrasse a opulência criativa da manhã . Apenas a florzinha de jasmim boiava ao doce sabor das ondas, sem código, sem senha, sem história. Como chegara ali ? O que representava ? Não se sabia.
Assim é o movimento inexorável das turvas águas do tempo. Estamos permanentemente entre duas marés cheias e o que importa é aquilo que construímos na vazante. E edificamos com dedos prenhes de eternidade, como se as ondas já se não avolumassem à nossa volta. Somos livres pedreiros nesta construção: podemos usar o concreto armado como matéria prima ou o cimento do sonho, a cal da arte, o tijolo da poesia. Seja qual for nossa escolha, apenas a argamassa do efêmero estará sempre à nossa inteira disposição. A mansão do peremptório será sempre edificada com o material do volátil.
Nestes dias a preamar levou um mestre da maré vazante. Chamava-se Almir Carvalho. Ele soube temperar o caldo da vida com o esmero de um Chef de alta cozinha. Muita bondade com algumas pitadas fortes de boêmia. Firmou amizades sinceras e inquebrantáveis. Uma boate concorridíssima e que nem precisava da presença feminina. Amores poucos, mas eternos e que sobrenadarão no mar dos tempos , como o broto de jasmim : O Clube Regatas Flamengo e Celininha Barros. Seu Almir , seguiu sem que ao menos conhecesse, os preceitos de Thoreau: não deixou que sua vida se estilhaçasse nos pormenores. Viveu beneditinamente, querido por muitos. Como um asceta perfeito conseguiu arrancar felicidade dos mínimos e insignificantes milagres desta vida. Ocupou-se de corpo e alma de alguns poucos afazeres, simplificou a existência, livrando-se da areia movediça das posses, do canto de sereia do consumo. Quando a preamar bateu à sua porta o encontrou feliz e realizado e ele mergulhou nas suas águas, ciente que completava um ciclo e refazia a unicidade da criação.
Baudelaire dizia que para suportar o terrível fardo da existência que quebranta os nossos ombros e nos curva em direção à terra faz-se mister embriagar-se sem trégua. E dava as opções possíveis: de vinho, de poesia ou de virtude. Seu Almir, sabiamente, se inebriou com um pouco de cada um desses ingredientes.
J. Flávio Vieira
4 comentários:
Que crônica linda . Senti a leveza da vida , toda sua embriaguês para um ponto de fechamento de ciclo.De vez em quando , um dos nossos conhecidos se despede , e a gente fica esperando a nossa maré ... Sinto saudades avolumadas , e elas ainda crescerão a cada dia. Acho que morrer é deixar de senti-las !
Obrigada pelo atendimento à minha mãe. Ela chegou toda encantada com você, viu ?
Hoje estivemos preocupados com Virgínia, mas vai dar tudo certo.
Tem horas, exatamente quando você escreve, que sou vejo em ti, o poeta !
Parece que nunca fez outra coisa na vida !?
Abraços.
Zé Flávio
Que bela e justa homenagem ao Seu Almir! Ele era querido por todos os cratenses, até pelos abstêmios vascainos, como eu, que não frequentava sua Boite Colibri. Certa vez, na época de Zico e companhia,era inicio de ano e encontrei com o Seu Almir na rua. Brinquei com ele: "O Sr. assistiu as previsões dos astrólogos no Fantástico, ontem? Todos dizem que o Vasco será o campeão deste ano." E ele calmamente me respondeu. "Aquela sua desgraça só é campeão na boca dos macumbeiros!.
Um abraço!
O texto está impecável, muito bem escrito e objetivado descreve muito bem a alegria das crianças com seus jogos.
Mas lamento que tenham usado um símbolo que reflete a morte de milhares de soldados americanos na Batalha de Iwo Jima em 1945, e ainda por cima, trocaram a bandeira americana por uma do Flamengo.
Cesar Augusto
agradeço à Socorro, ao Carlos Eduardo e ao César pelos comentários e pelas lembranças de Seu Almir.O César lembrou bem a utilização de um símbolo bélico no texto , o que certamente procede. Quem todos façam esforço de ver ali apenas o símbolo rubro-negro , um dos amores indissolúveis do nosso grande amigo.
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