Hoje, dia das crianças, Bisaflor está na VII Bienal do Livro, em Recife, contando histórias na Cidade do Livro, grande espaço criado para teatro de bonecos, contação de histórias e oficina de arte para confecção de livros. Bisaflor encanta muitas crianças, apresentando-lhes histórias fantásticas contadas em tudo quanto é de livro. As crianças pegam os livros, olham as ilustrações e já adivinham a história, ou a criam a seu modo, ou pedem que Bisaflor leia o livro pra elas. É nesse clima mágico que Bisaflor lê uma história linda, de uma menina chamada Guta e que era toda estrelada. A história foi escrita pelo mineiro Leo Cunha:
EM BOCA FECHADA NÃO ENTRA ESTRELA
Guta saiu pra conversar com as estrelas. Todo fim de semana agora era assim. Mal a noite caía – só tinha tropeçado – e Guta lá ia embora. Sítio afora, mistério adentro. Quanto mais escura a noite, melhor. Assim as estrelas desciam mais baixo e mais queriam descer. E o bate papo batia, até o sono bater.
Os pais se enchiam de ais. O pai roía a unha, a mãe mordia a fronha.
- Aonde vai essa menina?
- De novo com essa conversa de conversar com as estrelas?
- Não aprendeu na escola que elas moram longe demais, a séculos de anos-luz?
Tinha aprendido sim. Sabia tudo, tintim por tintim. Mas depois, no quadro negro da noite, Guta aprendia outra lição. É que as estrelas desciam, voando em sua direção. Chegavam bem perto, a um metro, a um segundinho-luz. Semana passada, uma quase pousou no seu ombro.
A família estava uma pilha. O pai preparava um calmante, a mãe não parava um instante.
- Filha, toma cuidado com as criaturas da noite! É cobra venenosa, barata pegajosa, coruja metida a prosa...
- É tatu mal-assombrado, sapo desencantado, coiote enluarado...
Mas Guta, de tão estrelada, não via perigo em nada. Nunca via aquelas criaturas nas suas andanças escuras. Só via mesmo as estrelas, e não se cansava de vê-las. Vinham dos ares e vinham dos montes, vinham aos montes e milhares, só pra brincar com ela. Eram suas convidadas, suas confidentes.
Guta contava histórias e inventava segredos. Desfiava memórias e desafiava seus medos. E falava até cansar, que estrela é bicho calado e gosta de escutar.
Biruta. Guta Biruta. O pai pensou em mandá-la pro hospício. A mãe achava a cura difícil.
- Essa menina vive no mundo da lua.
- Pior, no mundo das estrelas.
- Não vê os habitantes arrepiantes da noite...
- Os morcegos e os dráculas..
- Os mancebos e os crápulas...
- Não pode menina tão nova andando sozinha lá fora.
Guta já estava enjoando de tanto conselho absurdo. Os pais não se cansavam de pôr o bedelho em tudo? Os dois mais pareciam agulha emperrada, repetindo os mesmos discos e riscos da noite calada.
Enquanto isso, na calada da noite, os pais confabulavam:
- Guta fica vendo estrelas a um palmo do nariz e acha que as noites são belas, e acha que é feliz.
- Não vê as dezenas de perigos, as centenas de inimigos, os problemas infinitos?
Resolveram proibir a menina de passear à noite, no breu. Assim talvez entendesse que estrela só existe no céu.
Guta ficou trancada no quarto, fazendo sala pro lamento. O sítio lá fora, ela cá dentro. Ficou chorando num canto, num tanto de saudade. Já estava ficando tarde, as amigas deviam estar descendo, ela tinha que fugir... Fugiu.
Quando o pai viu o quarto vazio, sua barriga sentiu o frio.
- Meu Deus, a Guta sumiu!
A mãe não acreditava. Os dois deram pulos de raiva, ficaram fulos da vida. Só viram uma saída: sair atrás da fugida. Sítio afora, receio adentro, pro meio da escuridão. O pai com pistola e facão, a mãe com o terço na mão.
- Nunca vi noite tão escura!
- Como a Guta foi fazer essa loucura?
- Não sei, mulher. Procura!
Guta já estava bem longe, nem ela sabia onde. Estava pra lá da fazenda, estava pra lá de feliz. A noite era toda sua, vazia de lua, cheiinha de estrelas.
Os pais continuavam a busca, saltando de susto em susto. Viam vultos de corujas, coiotes, cobras, baratas, tatus e outros tantos fantasmas. A mãe, branca de tão pasma. O pai, com ataque de asma.
- Hoje até a bruxa deve estar solta.
- Meu Deus, e se a Guta não volta?
Mas, nesse momento, ouviram no vento a voz fina da menina.
- Escuta, é a voz da Guta!
- Com quem ela tanto fala?
- Com uma estrela cadente? Impossível!
- Com ma amiga carente? Duvido!
Descrentes e indiscretos, os dois chegaram mais perto. Ao fundo, sozinha no mundo, Guta tagarelava. E, em frente ao seu rosto, uma luz pisca-piscava.
- Não é amiga nem estrela coisa nenhuma!
- Ela está conversando é com...
Guta ouviu os pais. Tentou correr, não dava mais. Os dois já estavam ao seu lado. A estrela, amedrontada, voou para longe dali.
- Vocês espantaram a estrela!
- Não era estrela, filha, era só um vagalume...
- Um inseto que brilha, uma luz que surge e some.
Guta ficou calada. Os pais não entendiam nada. Aquele era um bicho encantado: tinha engolido uma estrela, era também estrelado. Por isso se entendiam.
Podiam chamá-la de louca, de biruta, de tonta ou de iludida. Não se importava mais, estava mais que decidida: ia continuar saindo, todo sábado e domingo, sítio afora, aventura adentro. E cada vez mais tagarela: em boca fechada não entra estrela.
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"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata."
(Carlos Drummond de Andrade)
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Um comentário:
Estrelas, a gente só engole o brilho.
E fica iluminada com elas !
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