Ela
Quantas vezes já disse
que é hora do cafezinho quente
mas nunca sinto o mesmo gosto
nem entra pelas narinas o mesmo perfume.
Assim é a vida
dessa alma alheia
que se abrigou nos cachos
das minhas axilas
e agora ao levantar-me
eis ela, essa alma atenta
dentro do açucareiro,
pelas bordas da xícara.
O+
Ter um filho pequeno
de férias ao nosso lado
é como assoprar bolinhas de sabão
deitado:
ora espocam no braço,
ora nos cegam os olhos.
mas sempre coloridas
voláteis,
fugidias.
Quando vai embora o rebento
logo a saudade cresce
um monstro no peito
e não vejo graça
nas bolinhas de sabão
tristes dentro do tubinho de plástico.
Flor de Pequi
Nosso inimigo-mor
veste-se com nossa pele
espreita por trás das nossas retinas
anda glorioso sustentado
por nossos músculos e tendões
até finge nossas mãos na hora da escrita.
Nosso inimigo-decano
é traiçoeiro, cínico
espera a mente dúbia
para lhe forjar medos.
Chegado o tempo de fustigar o corpo:
abdominais, pesos, sobriedade.
Chamar para o duelo
esse humano cruel
esse palhaço
esse espantalho sem cabeça.
Amanhecer
Acordei com o braço marcado
por um batom vermelho
de muriçoca.
Seus lábios circulares
deixam a impressão do afeto
e da loucura por meu sangue.
Deve ter sido uma grande festa.
Além da marca vejo também
um leve inchaço.
Só não ouvi seu violino
de cordas rompidas.
Sinais
Sensação estranha
de quem começa a viver agora
sem sacrifícios
sem loucura aparente.
Até a mente perigosa
parece adolescente trêmula.
Sei que não é presente do além
nem trombetas de um novo ano.
Apenas sinto o vazio amplo
sentado na cama sem fumar
mas olhando a fumaça
esfregar-se no basculante.
Sobejos
Não importa o tamanho da montanha
que lhe caia sobre a cabeça
nem a gigantesca mordida do hipopótamo
arrancando-lhe as nádegas:
a vida maltrata bem
mas nem sempre sortilégios.
Embriague-se do cotidiano:
teclado, mouse, cafeteira, ventilador, escova de dente.
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