Há alguns anos, comprei na Livraria Siciliano o livro “Minhas Histórias dos Outros”, do jornalista Zuenir Ventura. O título desse livro me deu a idéia de narrar, ao meu modo, as histórias dos outros que li e contei aos amigos em bate-papos informais. Inicio com a aventura de um ilustre cratense, acontecida há quase noventa anos.
Ao chegar a Fortaleza, Zezinho se extasiou com as opções de lazer que a capital oferecia, bem diferente daquela vidinha rotineira de um Crato, ainda província. Livre de qualquer censura passou a desfrutar de uma intensa vida social. Eram espetáculos teatrais, clubes de danças, serestas, bares e tantas outras coisas desconhecidas por ele. Não havia tempo para se preocupar com os estudos.
Certa vez, o senhor Pedro Pequeno, um rico comerciante cratense se hospedou com suas filhas na pensão em que Zezinho se alojara. Percebendo que o jovem cratense não freqüentava o curso preparatório e vivia se divertindo, segredou a um companheiro, sem perceber que o estudante, sentado numa mesa atrás, a tudo escutava: “Esse filho do nosso boticário não está estudando nada. É direto na farra! Quando chegar ao Crato eu vou contar tudo o que vi ao pai dele.” E o nosso Zezinho, admirador da beleza de uma das filhas daquele comerciante, transformado repentinamente em seu zeloso guardião, passou a achá-la feia e chata. “Quem diria que aquela moça magrinha e muito elegante viria a ser a minha esposa?” Indagava ele anos depois.
Zezinho estava consciente de que se voltasse ao Crato reprovado no vestibular seria severamente castigado pelo seu autoritário pai. Influenciado por Freitas, um colega de Recife, seu companheiro de pensão e festanças e, como ele, sem dar bolas para os estudos, resolveu partir para São Paulo em companhia do amigo, onde segundo pensavam, haveria emprego farto. Porém o dinheiro de que dispunha somente dava para a passagem de navio até a cidade de Recife. Mas o colega pernambucano lhe prometera que na sua cidade arranjaria com seus pais dinheiro suficiente para custear a despesa com a viagem dos dois até São Paulo. Assim sendo, tomaram o vapor “Acre” e zarparam do Mucuripe. À medida que o navio se afastava, Zezinho tinha a impressão que o farol piscava dando-lhe um saudoso adeus.
Ao chegarem a Recife, após dois dias de uma viagem na qual Zezinho passou a maior parte vomitando, ele se hospedou na pensão de um português. Estava fascinado pelos grandes sobrados, o movimento de veículos e as belas pontes daquela cidade. No dia seguinte, procurou Freitas, seu colega e companheiro de aventura. Este lhe comunicou que não mais iria seguir viagem, pois seus pais convenceram-no ficar em casa, e arranjaram para ele um bom emprego no jornal “Diário de Pernambuco”. Zezinho teve uma grande decepção. Estava sem dinheiro em terra estranha. Lembrou-se de Cavalcanti, um viajante, representante de medicamentos que frequentemente visitava a botica do seu pai. Contou-lhe sua situação e este o aconselhou a voltar para o Crato. Com a ajuda de Cavalcanti, Zezinho tentou arranjar emprego até juntar o suficiente para seu retorno ao Crato, como dizia a Cavalcanti. No íntimo, sabia que era outro seu objetivo. Acompanhado por Cavalcanti, visitaram várias farmácias do Recife, sem, contudo obterem êxito.
Após dois meses de tentativas frustradas, Zezinho não desistira de ir para São Paulo. Procurou então o Coronel Granja, abastado homem de negócios do Recife, que vivera muitos anos no Crato, onde se tornara amigo de seu pai. Contou ao coronel que desejava retornar à casa paterna, mas estava sem dinheiro. O coronel Granja, confiante na lisura do boticário cratense, ofereceu-lhe a quantia que ele precisava. Tão logo recebeu o dinheiro, Zezinho comprou passagem para São Paulo, embarcando no mesmo vapor Acre, que o trouxera de Fortaleza. Três dias depois, numa ensolarada tarde, aportaram em Salvador. O navio somente seguiria viagem pela madrugada e, os passageiros poderiam sair para conhecer a cidade. Zezinho andou de elevador, subiu e desceu o Plano Inclinado, visitou o Pelourinho, a Baixa dos Sapateiros, onde à noite assistiu a um espetáculo teatral no Cine-Teatro.
De volta ao navio, um jovem da polícia marítima encontrava-se à entrada. O comandante disse: “É esse aí!” Então o policial marítimo segurou Zezinho pelo braço e lhe disse: “Você não poderá seguir viagem. É menor, está desacompanhado e não tem autorização de seus pais.”
Aconteceu que no Recife, um jovem estudante cratense, que fora companheiro de infância de Zezinho, sabia dos planos do amigo e avisou ao Coronel Granja. Não haveria tempo para comunicar ao boticário do Crato. Então o coronel entrou em contato com a chefatura de polícia, que comunicou aos seus colegas da Bahia.
O jovem policial que o prendeu, viu nele apenas um jovem dominado pela aventura de viajar. Levou-o para passar o restante da noite em sua residência, próxima ao Largo Dois de Julho, onde Zezinho dormiu tranquilamente numa cadeira preguiçosa na sala de visitas. Ao despertar, surpreendeu a conversa do jovem policial com sua mãe, que o recriminava por ter levado um estranho à sua casa. Entretanto aquela recriminação da velhinha baiana não aborrecera Zezinho. Sentia-se com a sua viagem, participante de uma aventura de folhetim ou herói de fita de cinema. Na delegacia, o delegado tratou-o com muita cordialidade, como bem sabem fazer os baianos. Perguntaram-lhe se ele possuía algum parente ou conterrâneo em Salvador. Lembrou-se do doutor Dario Peixoto, um cratense ali residente, antigo amigo do seu pai. Este procurou o chefe de Polícia, o Conselheiro Seabra. Em seguida ficou quinze dias em Salvador, numa pensão cheia de estudantes, aguardando decisão de seu pai. No dia seguinte, os estudantes lhe mostraram as manchetes dos jornais, num deles, estava escrito, “Um menor fujão”; em outro, “Abandonou a casa paterna”, sugerindo que ele deveria ser recebido em casa com uma boa sova.
Em seguida, conforme determinação de sua casa, o fujão voltou para o Crato num trem até Juazeiro da Bahia e Petrolina. O restante da viagem foi feito em lombo de burro, em companhia do arrieiro Antonio Paixão. Oito dias, tempo de duração daquela enfadonha viagem. À medida que se aproximava do Crato, Zezinho não sentia alegria, mas a certeza de que uma grandiosa surra lhe aguardava. Tinha medo de prestar contas ao seu pai e mais ainda das lágrimas de sua mãe.
Chegando ao Crato, foi salvo por seu irmãozinho Aníbal, que acabara de nascer. Seu pai, conhecido em todo o Crato por Zuza da Botica, para não contrariar a mulher em seu “resguardo”, substituiu a surra que deveria ter aplicado no futuro farmacêutico, escritor e historiador cratense, J. de Figueiredo Filho, por dois anos de trabalho como operário na sua Farmácia Central.
(Adaptado por Carlos Eduardo Esmeraldo, do capítulo “Batendo Asas” do livro “Meu Mundo é uma Farmácia”, de J. de Figueiredo Filho, p. 61 a 71)
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Ano-novo de 1921 e o jovem Zezinho, aos 17 anos, fora mandado pelo pai à Fortaleza para tentar ingressar no curso de Farmácia. Até então levava uma vida de estudo, conciliada com muito trabalho na farmácia do pai. Tinha como diversão somente a escuta das conversas noturnas na botica de seu pai. Médicos, advogados, comerciantes e políticos do Crato ali se reuniam todas as noites para comentarem os assuntos da política, contarem “causos”, anedotas e falarem sobre literatura e outros assuntos da terra. Aquelas conversas eram instrutivas e inspiravam no jovem Zezinho o gosto pelos estudos e pela leitura.Ao chegar a Fortaleza, Zezinho se extasiou com as opções de lazer que a capital oferecia, bem diferente daquela vidinha rotineira de um Crato, ainda província. Livre de qualquer censura passou a desfrutar de uma intensa vida social. Eram espetáculos teatrais, clubes de danças, serestas, bares e tantas outras coisas desconhecidas por ele. Não havia tempo para se preocupar com os estudos.
Certa vez, o senhor Pedro Pequeno, um rico comerciante cratense se hospedou com suas filhas na pensão em que Zezinho se alojara. Percebendo que o jovem cratense não freqüentava o curso preparatório e vivia se divertindo, segredou a um companheiro, sem perceber que o estudante, sentado numa mesa atrás, a tudo escutava: “Esse filho do nosso boticário não está estudando nada. É direto na farra! Quando chegar ao Crato eu vou contar tudo o que vi ao pai dele.” E o nosso Zezinho, admirador da beleza de uma das filhas daquele comerciante, transformado repentinamente em seu zeloso guardião, passou a achá-la feia e chata. “Quem diria que aquela moça magrinha e muito elegante viria a ser a minha esposa?” Indagava ele anos depois.
Zezinho estava consciente de que se voltasse ao Crato reprovado no vestibular seria severamente castigado pelo seu autoritário pai. Influenciado por Freitas, um colega de Recife, seu companheiro de pensão e festanças e, como ele, sem dar bolas para os estudos, resolveu partir para São Paulo em companhia do amigo, onde segundo pensavam, haveria emprego farto. Porém o dinheiro de que dispunha somente dava para a passagem de navio até a cidade de Recife. Mas o colega pernambucano lhe prometera que na sua cidade arranjaria com seus pais dinheiro suficiente para custear a despesa com a viagem dos dois até São Paulo. Assim sendo, tomaram o vapor “Acre” e zarparam do Mucuripe. À medida que o navio se afastava, Zezinho tinha a impressão que o farol piscava dando-lhe um saudoso adeus.
Ao chegarem a Recife, após dois dias de uma viagem na qual Zezinho passou a maior parte vomitando, ele se hospedou na pensão de um português. Estava fascinado pelos grandes sobrados, o movimento de veículos e as belas pontes daquela cidade. No dia seguinte, procurou Freitas, seu colega e companheiro de aventura. Este lhe comunicou que não mais iria seguir viagem, pois seus pais convenceram-no ficar em casa, e arranjaram para ele um bom emprego no jornal “Diário de Pernambuco”. Zezinho teve uma grande decepção. Estava sem dinheiro em terra estranha. Lembrou-se de Cavalcanti, um viajante, representante de medicamentos que frequentemente visitava a botica do seu pai. Contou-lhe sua situação e este o aconselhou a voltar para o Crato. Com a ajuda de Cavalcanti, Zezinho tentou arranjar emprego até juntar o suficiente para seu retorno ao Crato, como dizia a Cavalcanti. No íntimo, sabia que era outro seu objetivo. Acompanhado por Cavalcanti, visitaram várias farmácias do Recife, sem, contudo obterem êxito.
Após dois meses de tentativas frustradas, Zezinho não desistira de ir para São Paulo. Procurou então o Coronel Granja, abastado homem de negócios do Recife, que vivera muitos anos no Crato, onde se tornara amigo de seu pai. Contou ao coronel que desejava retornar à casa paterna, mas estava sem dinheiro. O coronel Granja, confiante na lisura do boticário cratense, ofereceu-lhe a quantia que ele precisava. Tão logo recebeu o dinheiro, Zezinho comprou passagem para São Paulo, embarcando no mesmo vapor Acre, que o trouxera de Fortaleza. Três dias depois, numa ensolarada tarde, aportaram em Salvador. O navio somente seguiria viagem pela madrugada e, os passageiros poderiam sair para conhecer a cidade. Zezinho andou de elevador, subiu e desceu o Plano Inclinado, visitou o Pelourinho, a Baixa dos Sapateiros, onde à noite assistiu a um espetáculo teatral no Cine-Teatro.
De volta ao navio, um jovem da polícia marítima encontrava-se à entrada. O comandante disse: “É esse aí!” Então o policial marítimo segurou Zezinho pelo braço e lhe disse: “Você não poderá seguir viagem. É menor, está desacompanhado e não tem autorização de seus pais.”
Aconteceu que no Recife, um jovem estudante cratense, que fora companheiro de infância de Zezinho, sabia dos planos do amigo e avisou ao Coronel Granja. Não haveria tempo para comunicar ao boticário do Crato. Então o coronel entrou em contato com a chefatura de polícia, que comunicou aos seus colegas da Bahia.
O jovem policial que o prendeu, viu nele apenas um jovem dominado pela aventura de viajar. Levou-o para passar o restante da noite em sua residência, próxima ao Largo Dois de Julho, onde Zezinho dormiu tranquilamente numa cadeira preguiçosa na sala de visitas. Ao despertar, surpreendeu a conversa do jovem policial com sua mãe, que o recriminava por ter levado um estranho à sua casa. Entretanto aquela recriminação da velhinha baiana não aborrecera Zezinho. Sentia-se com a sua viagem, participante de uma aventura de folhetim ou herói de fita de cinema. Na delegacia, o delegado tratou-o com muita cordialidade, como bem sabem fazer os baianos. Perguntaram-lhe se ele possuía algum parente ou conterrâneo em Salvador. Lembrou-se do doutor Dario Peixoto, um cratense ali residente, antigo amigo do seu pai. Este procurou o chefe de Polícia, o Conselheiro Seabra. Em seguida ficou quinze dias em Salvador, numa pensão cheia de estudantes, aguardando decisão de seu pai. No dia seguinte, os estudantes lhe mostraram as manchetes dos jornais, num deles, estava escrito, “Um menor fujão”; em outro, “Abandonou a casa paterna”, sugerindo que ele deveria ser recebido em casa com uma boa sova.
Em seguida, conforme determinação de sua casa, o fujão voltou para o Crato num trem até Juazeiro da Bahia e Petrolina. O restante da viagem foi feito em lombo de burro, em companhia do arrieiro Antonio Paixão. Oito dias, tempo de duração daquela enfadonha viagem. À medida que se aproximava do Crato, Zezinho não sentia alegria, mas a certeza de que uma grandiosa surra lhe aguardava. Tinha medo de prestar contas ao seu pai e mais ainda das lágrimas de sua mãe.
Chegando ao Crato, foi salvo por seu irmãozinho Aníbal, que acabara de nascer. Seu pai, conhecido em todo o Crato por Zuza da Botica, para não contrariar a mulher em seu “resguardo”, substituiu a surra que deveria ter aplicado no futuro farmacêutico, escritor e historiador cratense, J. de Figueiredo Filho, por dois anos de trabalho como operário na sua Farmácia Central.
(Adaptado por Carlos Eduardo Esmeraldo, do capítulo “Batendo Asas” do livro “Meu Mundo é uma Farmácia”, de J. de Figueiredo Filho, p. 61 a 71)
3 comentários:
Carlos Eduardo,
Adorei a aventura. Adorei sua adaptação. Não deve estar devendo nada ao original. Li de um só gole.
Abraço,
Claude
Gostei demais dessa história. Você mantém o clima do suspense. Só descobri o personagem no final. Engraçado é que temos na família um "causo" parecidíssimo, cujo título seria também : O FUJÃO.
Pergunta pra minha irmã Zélia...! ( risos)
Abraços, Carlos.
A Claude e Socorro
Agradeço os comentários e incentivos recebidos de vocês.
Desde que li "O Meu Mundo é uma Farmácia" gostei muito dessa narrativa, que somente agora resolvi fazer essa adaptação, tomando apenas o eixo central da história. Ela tem outros desmenbramentos laterais, como o reencontro dele com o colega Paiva, que o visitou no Crato, muitos anos depois já formado em medicina.
Acredito que dentro de cada um de nós existe uma criança que um dia foi fujona. Eu mesmo, quando tinha uns oito anos de idade, para escapar de uma boa surra, fuji de casa, tendo antes anunciado a fuga. Passei cerca de duas horas no Alto do Seminário. Naquela brevíssima fuga, levei apenas o meu copo. Naquela época não sabia beber água em outro copo, que não o meu. Essa brevíssima fuga foi o suficiente para deixar todos lá de casa desesperados. Procuraram-me até no trem que todas as segundas-feiras ia do Crato até a Paraíba.
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