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domingo, 6 de setembro de 2009

" O MODELO BIOMÉDICO E CARTESIANO NA MEDICINA"

Tive a distinguida honra de ser orientado na minha dissertação de Mestrado pelo Cubano Prof. Dr. Fernando Luis Gonzáelz Rey - Psicólogo Clínico de renome internacional -. Durante os anos de convívio de orientação consolidamos uma estreita amizade que perdura até os dias de hoje. Ao término dos trabalhos me convidou a ir a Cuba tendo sido seu hóspede por inesquecíveis três meses. Passava horas em sua seleta biblioteca e sob suas indicações lia Capra, Foucault, Descartes, e a me apaixonar perdidamente pelos clássicos gregos e principalmente pela História da Medicina, disciplina que ministro em Cursos de Pós Graduação. Em nossas longas conversas ao fim da tarde debatíamos acerca do Modelo Biomédico. O artigo de hoje trás reminiscências desse colóquio.

No decorrer de toda a ciência ocidental, o desenvolvimento da biologia caminhou de mãos dadas com o da medicina.. Por conseguinte, é natural que, uma vez estabelecida firmemente em biologia à concepção “mecanicista da vida”, ela dominasse também as atitudes dos médicos em relação à saúde e à doença. A influência do paradigma cartesiano sobre o pensamento médico resultou no chamado modelo biomédico, que constitui o alicerce conceitual da moderna medicina científica. O corpo humano é considerado uma máquina que pode ser analisada em termo de suas peças; a doença é vista como um mau funcionamento dos mecanismos biológicos, que são estudados do ponto de vista da biologia celular e molecular; o papel dos médicos é intervir, física ou quimicamente para consertar o defeito do funcionamento de um específico mecanismo enguiçado. Três séculos depois de Descartes a medicina se baseia como escreveu Engel: “nas noções do corpo como uma máquina, da doença como conseqüência de uma avaria na máquina, e da tarefa do médico como conserto dessa máquina”. Ao concentrar-se em partes cada vez menores do corpo, a medicina moderna perde freqüentemente de vista “o paciente” como ser humano, e, ao reduzir a saúde a um funcionamento mecânico, não pode mais ocupar-se com o fenômeno da cura. Essa é talvez a mais séria deficiência da abordagem biomédica. Embora todo médico praticante saiba que a cura é um aspecto essencial de toda a medicina, o fenômeno é considerado fora do âmbito científico; o termo “curar” é encarado com desconfiança, e os conceitos de saúde e cura não são discutidos normalmente nas escolas de medicina. O motivo da exclusão do fenômeno da cura da ciência biomédica é evidente. É um fenômeno que não pode ser entendido com termos reducionistas. Isso se aplica à cura dos ferimentos e, sobretudo, à cura das doenças o que geralmente envolve uma complexa interação entre os aspectos físicos, psicológicos, sociais e ambientais da condição humana.


Reincorporar a noção de cura à teoria e prática da medicina, significa que a ciência médica terá que transcender sua estreita concepção de saúde e doença. Isso não quer dizer que ela tenha que ser menos científica. Pelo contrário, ao ampliar sua base conceitual, pode tornar-se mais coerente com as recentes conquistas da ciência moderna. A saúde e o fenômeno da cura têm tido significados diferentes conforme a época. O conceito de saúde, tal como o conceito de vida, não pode ser definido com precisão. Os dois estão intimamente relacionados. O que se entende por saúde depende da concepção que se possua do organismo vivo e de sua relação com o meio ambiente. Como essa concepção muda de uma cultura para outra, e de uma era para outra, as noções de saúde também mudam. O amplo conceito de saúde necessário à nossa transformação cultural – exige uma visão sistêmica dos organismos vivos e, correspondentemente, uma visão sistêmica da saúde. Para começar, a definição de saúde dada pela OMS no preâmbulo de seu estatuto poderá ser útil: “A saúde é um estado de completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou enfermidades”. Embora a definição da OMS seja algo irrealista, pois define a saúde como um estado estático de perfeito bem estar, em vez de um processo em constante mudança e evolução – ela revela, não obstante, a natureza holística da saúde, que terá de ser apreendida se quisermos entender o fenômeno da cura.


A medicina ocidental emergiu de um vasto reservatório de curas tradicionais e populares, e propagou-se subseqüentemente ao resto do mundo; acabou por transformar-se em vários graus, mas conservou sua abordagem biomédica básica. Com a extensão global do sistema biomédico, vários autores abandonaram os termos: “ocidental”, “científica” ou “moderna” e referem-se agora, simplesmente, à “medicina cosmopolita”. Mas o sistema médico “cosmopolita” é apenas um entre muitos. A maioria das sociedades apresenta um pluralismo de sistemas de crenças médicas sem nítidas linhas divisórias entre um sistema e outro. Além da medicina cosmopolita e da Medina popular, ou curandeirismo (os pesquisadores biomédicos tendem a desprezar as práticas dos curandeiros populares, relutando em admitir sua eficácia), muitas culturas desenvolveram sua própria medicina, algumas de elevada tradição. A semelhança da medicina cosmopolita, esses sistemas – indiano, chinês, persa e outros – baseiam-se numa tradição escrita, usando conhecimentos empíricos, e são praticados por uma elite profissional. Sua abordagem é holística, se não efetivamente na prática, pelo menos na teoria. Além desses sistemas, todas as sociedades desenvolveram um sistema de medicina popular – crenças e praticas usada nos seio de uma família, ou de uma comunidade que são transmitidas oralmente e não requerem curandeiros profissionais. A prática da medicina popular tem sido tradicionalmente uma prerrogativa das mulheres, uma vez que a arte de curar, na família, está usualmente associada às tarefas e ao espírito da maternidade. Devo lembrar aqui a odisséia dos xamãs, pagés, benzedeiras, sacerdotes de todas as culturas arcaicas e da antiguidade, a mitologia das deusas arte de curar greco romanas, etc. Os curandeiros, por sua vez, são mulheres ou homens em proporções que variam de cultura para a cultura.Não têm uma profissão organizada; sua autoridade deriva de seus poderes de cura – freqüentemente interpretadas como o acesso deles ao mundo do espírito - Basta o leitor de debruçar sobre a história dos nossos índios e dos índios das Américas e terá um panorama esclarecedor, ou então, mais próximo no nosso Cariri as “rezadeiras e benzedeiras”.


Com o surgimento da medicina organizada, de longa tradição, entretanto, os padrões patriarcais se impuseram e a medicina passou a ser dominada pelos homens. Isso é verdadeiro tanto para a medicina chinesa ou grega clássica quanto para a medicina européia medieval, ou a medicina cosmopolita. No próximo artigo vou abordar a maior revolução do setor educacional e da medicina, ocorrida nos EUA e que reforçou o patriarcalismo e o racismo naquele País, embora a reestruturação de ensino médico em particular, tenha trazido incomparáveis avanços dentro do modelo que leva o nome do seu coordenador Flexner. Na história da medicina ocidental, a conquista do poder por uma elite profissional masculina envolveu uma longa luta que acompanhou o surgimento de uma abordagem racional e científica da saúde e da cura. O resultado dessa luta foi o estabelecimento de uma elite médica quase exclusivamente masculina e a intrusão da medicina em setores que eram tradicionalmente atendidos por mulheres, como o parto. Esse patriarcalismo foi sendo paulatinamente derrubado pelos movimentos de emancipação feminina ao longo do tempo e até culminar hoje com a consciência do domínio do seu corpo e alma e eu lugar na sociedade machista intra e extra muros das universidades. Elas reconheceram nas lutas travadas principalmente no campo da medicina que o controle patriarcal era exercido como controle de seu próprio corpo e estabeleceram como um dos seus objetivos centrais a plena participação das mulheres na assistência à sua própria saúde.



8 comentários:

Liduina Belchior disse...

Muito bem, gostei de tudo escreveu.
Queria apenas acrescentar que o
médico, o enfermeiro e outros membros da equipe multidisciplinar
que acompanham o humano enfermo são
cuidadores.E o cuidador, como você
escreveu e escreveu bem,necessita
perceber mais o lado humano/holístico/psicológico; e sentir que muitos sintomas apresentados são somatizações de problemas psiquicos não resolvidos.
Ouvir e olhar lá dentro do olho do
paciente é a tônica principal para descobrir até o que que ele não verbaliza.O corpo fala e fala numa
dimensão que transcende.

Parabéns,Nilo!

Liduina Belchior disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Ana Cecília S. Bastos disse...

Nilo, como o mundo é pequeno! conheço Fernando Rey, trabalho numa perspectiva convergente com a dele. Há duas semanas ele até esteve aqui em Salvador com meus colegas (infelizmente não pude vê-lo porque eu tinha ido a São Paulo). Onde você fez seu mestrado?
Quando vi você no Cariricaturas, fiquei com saudades de Eleriza e Silvana, minhas colegas tão queridas no Dom Bosco. Como estão ela? Dê meu abraço forte quando encontrá-las.
E gosto de ler suas crônicas!
um abraço,
Ana Cecília

Anônimo disse...

Muito boa e oportuna as colocações de Nilo Sérgio com respeito ao tema corpo/saúde/doença sob o viés da razão instrumental. Mas, vale salientar, a contribuição das Ciências Sociais para alargamento do campo de conhecimento sobre esses dilemas da natureza humana. O coneito de corpo, de cultura, de meio ambiente finalmente tornaram-se suportes relativizadores na compreensão do fênomeno da doença.
Principalmente a Antropologia, a ciência do homem, tem levado a discursão para além da visão reificadora da medicina.
Assim como a Ana, também gostei de rever o Nilo. Não sei se estou certo, mas acho que o conheci como coroinha nas missas do Pe. Frederico. É isto mesmo ?

Nilo Sergio Monteiro disse...

Liduina,
Esta perspectiva histórica do cuidador está muito definida nas profissões que assumem a tarefa mais árdua de estar ao lado e prestar o árduo mister de dar o suporte da assitência, tipo , por a mão na massa (figurativo). Esse o caso da enfermagem. No seu caso esse olhar e o entender é inerente a própria epistemologia da profissão principalmente os que atuam no âmbito hospitalar e ou os quemantêm estreitos vínculos com os me´dico. Seria interesante uma convivência mais estreita com os psi. E na Universidade a tão falada interdisciplinaridade que não vejo. Muito menos a Trans.
Agradeço seus sempre inteligentes comentários.

Nilo Sergio Monteiro disse...

Ana Cecília, que mundo pequeno este que nos faz reencontrar os que amamos e temos carinho especial. Vc é uma delas. Leio sempre suas crônicas. Espero o dia de um reencontro nessa terra amada.
Coincidentemente Elerisa e Silvânia perguntaram por ti. Depois que as informei que estavas escrevendo aqui no Blog. Ficaram num contentamento só. Vou te passar os e-mails das duas ok? Mais uma coisa em comum descobrimos. Fernando Rey. Sou fã de carterinha e leio tudo o que ele escreve. Meu Mestrado aconteceu na UFC em um período em que ele esteve como visitante. A dissertação aborda as representações , crenças e valores inserdos na subjetividade das categorias: médicos, farmacêuticoe e consumidres com relação aos medicamentos. Adoro Psicologia,,,se queres saber!
Feliz e não me envaideça com seus elogios viu? Abraço no seu coração.

Nilo Sergio Monteiro disse...

Prof. José Nilton. Que prazer enorme e quanta honra seus comentários. Sim fui coroinha de Pe. Frederico e talvez por sua influência terminei indo para o Seminário Diocesano. Quase que viro Pe. Nilo, mas a vida extra muros teve seu apelo mais forte pelos olhos de uma interna do Sta. Teresa. Veja o senhor como não tinha vocação não é? E Deus na Sua infinita bondade e compreenssão me mandou descer a ladeira.
Quanto ao texto e vossa sábia e douta observações, sigo essa linha das Ciências Sociais e da Antropologia. Passo para os meus alunos a Medicina nesse contexto do olhar biopsicosocial. Sou um ferrenho defensor da introdução da filosofia no curso médico, assim como da História da Medicina relativisando e reduzindo a visão Cartesiana e Fleneriana da abordagem clínica.
Fico hoje profundamente feliz e recompensado por vossas palavras. Sou seu admirador por tudo o que o senhor representa para gerações e mais gerações de Cratenses. E por tudo que nos legou do vosso caráter e retidão como pessoa.
Grato. O aprendiz de Deus e da natureza dos homens.

Anônimo disse...

Este trecho faz parte do livro de Capra, ponto de mutação.