Criadores & Criaturas



"Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
"

(Carlos Drummond de Andrade)

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... Por do Sol em Serra Verde ...
Colaboração:Claude Bloc


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quinta-feira, 10 de junho de 2010

Distrações

Quantas delícias perco.
Tomo sorvete como se comesse capim.

O prazer da fértil mijada
agora um olhar assustado.

Rumino.
Papada flácida pelo pescoço.

Olhar grave.
Cenho enrugado.

Preciso com urgência
colar o vaso de porcelana.

Um quebra-cabeça.
Não estourar os miolos.

Quanta vida desperdiço.
Bebo água como se morresse.

Não é bom tanta sede.
Pasto.

Preciso encher o aquário.
O peixinho me olha aflito.

Tentarei novamente
ensinar xadrez
ao meu filho.

O garoto prefere
playstation.

Belo o seu riso.
Gargalhada santa.

Perfume.
Feijão na panela.
Vem do apartamento de cima.

O vizinho ouve
Vanessa da Mata.

Preciso cortar meu cabelo.
Não bebo sexta.

Não bebo.
Juro.

Lavar a louça.
Não quebrar o copo.

Talvez eu corte hoje.
O dedo.

Prometo.
Só o dedo mindinho.
Ver de novo meu sangue.

Saudades de quem não conheço.
Da voz rouca.
Da piscina.

(tu tens uma piscina
e uma voz rouca?)

Um mergulho.

Deixa-me.
Não me afogo.

Devo agora meditar
ouvindo o barulho
da descarga.

Quem sabe
eu seja louco.

Quisera.
Quimera.

2 comentários:

José do Vale Pinheiro Feitosa disse...

Domingos é um poeta "do aqui e agora", fazendo ligações como associações de idéias. Uma palavra que se associação a outro pensamento. Ao mesmo tempo que faz isso, tem uma narrativa histórica: estas "distrações" bem demonstram a questão da idade e das transformações do corpo com ela. E fala dos elementos do cotidiano sentado em algum lugar do espaço da casa e parado ficasse juntando tudo que o desperta como luzes de vagalume, luminosa e rápida, um cheiro que vem da vizinhança, uma formiga que sobe algum recanto desprevízel do domicílio, uma tosse e sua secreção pois tudo é matéria deste homem que não pára sem dizer algo. Sempre. Ele bem podia fazer a alegoria do cego (como somos sobre certas questões filosóficas) que apesar disto, não para de descrever, notar, avaliar, classificar o que ouve em seu entorno. Não digo da cegueira, falo da necessidade de se dizer o que se capta do mundo, mesmo que na falta de algum dos sentidos essenciais, como a compreensão da complexidade e o apenas simples.

Domingos Barroso disse...

José do Vale Pinheiro Feitosa,
a análise de um poema
buscando a essência
de quem o escreveu
é fabuloso.

Poucos têm a capacidade
de andar na linha tênue
do Ato Poético.

Muitos ao fazerem
acabam ou simplórios
ou obscuros.

Não é novidade o elogio
que te faço agora:

tua alma tem uma compreensão
rara do criador, da cria
e do processo construtivo.

A tua sensibilidade (Pensador que és) não se restringe apenas à extensão do verbo. Tu colhes o orvalho das palavras.
"...a compreensão da complexidade e o apenas simples", neste intervalo, então, surge o poema.

Um forte abraço.