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O silêncio da salinha era quebrado apenas pelos delicados movimentos dos dedos na lã e pelo ruflar invisível das asas de um beija-flor que assediava sensualmente uma rosa-menina que pendia de um jarro da janela. A mântrica repetição dos movimentos da agulha e da cadeira como que hipnotizava a velhinha. E o sono desenrolou-se como se preso estivesse ao novelo de lã. A cabeça prateada, empurrada pelo sono, recostou-se sobre um dos ombros e a agulha tombou sobre o projeto da colcha.
De repente, o silêncio da sala perturbou-se com um outro som.Um guri nu na inocência dos seus oito meses engatinha pela sala e se aproxima da cadeira da vovó. Ali encontra o fio de lã que ligava , umbilicalmente, o novelo ao promissor início de colcha. Enrosca as mãozinhas no fio e tenta escalar a altura da cadeira, como se se tratasse das tranças de Rapunzel.Mal percebe que o fio não tem sustentação e que à medida que segue puxando, vai, pouco a pouco, desfazendo o trabalho de tantos e tantos meses da avó. Quando desperta, a velhinha atônita se depara com o netinho sorrindo enroscado numa rede que minutos antes havia desenhado um jardim , na colcha que tão cuidadosamente vinha sendo construída.
Na sala só o beija-flor pareceu entender a profundidade da cena que acabara de presenciar. No tear da vida é exatamente assim. O novo sempre é tecido pelas mãos do velho e mal a colcha começa a se desenhar principia o desfazer-se A obra do homem, por mais linda e promissora que seja , tecida com inspiração e transpiração , árdua e demoradamente, se desfaz num fugaz instante . O tempo, engatinhando como um menino, desfaz o crochê da vida continuamente : os desenhos das ilusões, o bordado das esperanças, o macramé do vivido e do por viver. Perplexos o beija-flor e o menino como se perguntam: E o que fazer com este fio de eternidade a atar, indelevelmente, o novelo do desejo à esfacelada colcha do sonho ?
J. Flávio Vieira
4 comentários:
Já li de Zé Flávio tanta coisa boa, tanta coisa linda ... Mas, "Lã" , já elegi como favorito.
Fascinada com a pena, feito pincel , nas mãos desse escritor. Desenhando e pintando, e eu fotografando com o olhar... Até a cena final : o enrolar e o desenrolar.
Fico com a ideia dos recomeços ... Árduos , insatisfeitos , mas conscientes na esperança !
Lindo, lindo, lindo, meu amigo querido !
Abraços.
Socorro,
Que legal vc tenha gostado. Estive viajando semana passada e nãe escrevi como ocstumo fazer. Hoje escarafunchando o computador encontrei este texto ´de que já nem me lembrava. Fico feliz vc tenha gostado.
Chero!
José Flavio,
Que maravilha de texto! Como diria a "galera jovem" : tudo de bom! Bateu fundo e arrebatou mais uma vez as exclamações de minh'alma.
Continuo sua fã incondicional.
Abraço,
Claude
Profa Claude,
Que legal vc tenha apreciado o texto! Fico feliz que lhe tenha tocado. No fim é isto mesmo que vale, a possibilidade de mexer, agitar quem se detém nas suas linhas.
Abraço,
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